Maravilhas do Mundo Prog: Genesis – The Musical Box [1971]
Por Mairon Machado
Depois de lançar Trespass, contendo dentre outras a Maravilhosa “Stagnation“, o grupo britânico Genesis passou por um processo de transformação que interferiu diretamente na carreira da banda, elevando-a para patamares impensáveis quando o grupo surgiu em meados da década de 60.
A saída inesperada do guitarrista Anthony Phillips levou a entrada (temporária) de Mick Barnard, e logo em seguida, do desconhecido Steve Hackett. As performances erráticas do baterista John Mayhew também influenciaram para que Peter Gabriel (vocais, flautas, percussão), Tony Banks (teclados, violões) e Mike Rutherford (baixo, guitarras, violões) a contratar um novo baterista, no caso o também desconhecido Phil Collins.
A carreira musical de Collins começou quando ele tinha quatorze anos, momento em que ele ingressou na Barbara Speake Stage School. Nesta escola, Collins passou a desenvolver seu lado de ator e modelo, atuando em peças teatrais das quais muitas eram musicais, ajudando o menino a desenvolver seu lado vocal. Seu talento destacou-se de tal forma que rapidamente passou a ser ator principal em peças de teatro, filmes e levando-o a ser convidado pelos Beatles para participar das gravações do filme A Hard Day’s Night, como um dos adolescentes que gritam desesperadamente pela banda durante uma apresentação na TV.
Ao mesmo tempo, Collins mantinha-se apaixonado pela música, participando vez ou outra de pequenos grupos, como o Real Thing e o Freehold, aonde escreveu sua primeira canção, “Lying Crying Dying”. O instrumento sempre foi a bateria, e graças a ela, Collins gravou seu primeiro álbum no grupo Flaming Youth, no caso Ark 2 (1969), no qual também apresenta seus dotes vocais. O grupo durou pouco mais de um ano, separando-se sem ter conseguido um sucesso, e então, eis que um anúncio no Melody Maker surge na vida de Collins, que respondeu ao mesmo. O teste foi feito na casa de Peter Gabriel, e assim foi a entrada do baterista no Genesis.
Já a carreira de Hackett sempre foi voltada para a música. Quando adolescente, o guitarrista havia participado dos grupos Canterbury Glass e Sarabande, ambas com fortes raízes na cena psicodélica londrina, que engatinhava para tornar-se o rock progressivo. Em 1970, ingressou no grupo Quiet World, com quem gravou o álbum The Road (1970). A banda durou apenas alguns meses, pois rapidamente, Hackett viu o mesmo anúncio lido por Collins, e foi tentar a sorte no grupo que buscava um guitarrista e um baterista. Em dezembro de 1970, Hackett entrava para o Genesis, e assim, surgia uma das formações mais emblemáticas da história do rock progressivo: Peter Gabriel, Mike Rutherford, Tony Banks, Steve Hackett e Phil Collins.
Entre 1971 e 1974, essa formação gravou quatro álbuns de estúdio e um ao vivo, aonde, com uma raridade exclusiva, foram paridas Maravilhas Prog que preencheriam várias postagens dessa sessão, a começar pelo álbum de estreia da formação, Nursery Cryme, o terceiro da carreira do Genesis.
Gravado durante duas semanas de agosto do mesmo ano, esse é um LP magnífico, composto de sete canções que das quais, quatro certamente são Maravilhosas passagens musicais do estilo progressivo. É difícil destacar uma delas, e a escolha aqui se deve muito mais pela importância na carreira do Genesis do que pela musicalidade em si, já que as demais (que serão citadas na sequência) também merecem seus méritos, e algum dia terão seu espaço no Maravilhas do Mundo Prog.
A escolhida então é a Maravilhosa faixa de abertura de Nursery Cryme, “The Musical Box”. Ela é um conto de duas crianças moradoras de uma casa de campo típica, com uma babá que cuida dos dois amigos, chamados de Cynthia Jane De Blaise-William e Henry Hamilton-Smythe. Cynthia tem nove anos, enquanto Henry tem oito anos.
A dupla é uma legítima representante das famílias britânicas com certa reputação durante a Era Vitoriana, na qual a Rainha Vitória governou a Grã-Bretanha, período esse que durou de junho de 1837 a janeiro de 1901. É nesse período, por exemplo, que o Reino Unido consolida-se como um expoente para a Revolução Industrial, o que favoreceu ao desenvolvimento de uma classe média muito mais educada e bem financeiramente. Cynthia e Henry então são filhos de famílias dessa época vivendo em uma casa de campoe passam praticamente todo o dia, em uma espécie de créche comum à época, localizada na parte superior da casa de família e tendo uma babá como supervisora, lavando, vestindo e cuidando das crianças.
A babá leva as crianças para brincar durante a manhã, período que não há aulas, e também cuida dos mesmos durante o almoço, geralmente comido na créche. Pela tarde, há uma sesta e um passeio com jogos, além de uma visita com a mãe, aonde cantam e recitam versos até voltarem para seus quartos. O jogo mais comum dessas famílias é o críquete, na qual as crianças usam bastões para fazerem uma bola passar no meio de argolas.
Esse é o ambiente em que Cynthia e Henry vivem, e um dia, os dois estão brincando, jogando críquete, quando repentinamente, a menina arranca a cabeça de Henry com o martelo do jogo, sem nenhum motivo aparente (ciúmes talvez).
Duas semanas depois da morte do menino, a garota entra no quarto de Henry e encontra o principal tesouro do garoto, uma pequena caixa de música. A garota abre a caixa, que passa a tocar uma canção chamada “Old King Cole”, e enquanto a canção toca, surge uma pequena figura de um espírito. É Henry que retorna, tentando vingar-se de Cynthia, exigindo que ela humilhe-se para ele, realizando seus desejos, inclusive os carnais. Henry tenta persuadir Cynthia a ter uma relação sexual.
Porém, o espírito de Henry está envelhecendo rapidamente, apesar de continuar no corpo de uma criança, criando barba e rapidamente tendo cabelos brancos. Os barulhos de Henry e Cynthia chamam a atenção da babá de Cynthia, Nanny, que invade o quarto e acaba destruindo a caixa de música, juntamente com o espírito de Henry.
Essa história aparece musicalmente nos onze minutos iniciais do LP, que são daqueles momentos mágicos, na qual uma pessoa que nunca ouviu Genesis, certamente se apaixona pelo som da banda. “The Musical Box” começa com treze acordes de violões, aproveitados de um tema criado por Philips e que foi batizado inicialmente como “Manipulation”, seguidos por um dedilhado de violões (cortesia de Banks e Rutherford, também advindo de “Manipulation”) e trazendo os vocais de Gabriel contando o início da história, quando os garotos ainda estão na créche ouvindo histórias.
O trio de violões segue seu dedilhado, enquanto Gabriel faz o papel da babá, contando histórias para as crianças, e com a guitarra de Hackett chorando ao fundo.
O interlúdio apresenta a famosa frase: “Play me my song, here it comes again“, com intervenções do tema oriental da guitarra e seguida por um breve solo de flauta em um trecho mais tenso do dedilhado dos violões. A canção fica sobrecarregada, e enquanto Collins faz vocalizações, Gabriel faz o papel de Henry pedindo mais tempo para viver. É o assassinato do menino.
Depois de uma pequena série de vocalizações, flauta e guitarra fazem um tema marcado, com a flauta fazendo mais um pequeno solo, seguido pelo lindo solo de Hackett. Aqui surge uma tímida marcação no chimbal.
Repentinamente, marcações suaves nos pratos e tons acompanham o tema de flauta e guitarra, e o interlúdio é repetido, entrando no pesado trecho central, com guitarra e baixo fazendo marcações mescladas com o órgão, que nos apresentam o fantástico solo de Hackett. O grande destaque nesse trecho é a participação de Collins, que esmerilha a bateria como poucos, em uma série de viradas e batidas aleatórias muito ferozes.
O peso é aliviado pelos violões, que dão sequência para a letra através de uma voz triste de Gabriel, com intervenções ao fundo da guitarra, voltando então para o peso anterior, agora para Banks solar nos teclados, e Collins demolir seu kit com batidas pesadíssimas. Piano elétrico e guitarra apresentam um breve tema sobre a demolidora cozinha do baixo e bateria, que cavalgam pela sala, e Hackett arranca uivos da guitarra, assim como Banks também está socando seu órgão com gana.
Encerrando esse pesadíssimo momento, bateria, baixo, órgão e guitarra apresentam um tema marcado, veloz e insano, com Collins novamente dando um show em seu kit, em uma série de viradas espetaculares e muito bem marcadas, acalmando tudo novamente com a abertura da caixa musical.
O dedilhado de violões traz a voz de Henry, demonstrando seus sentimentos por Cynthia, e assim, o órgão ganha espaço juntamente com a percussão, enquanto Henry declama suas lamentações para Cynthia. A agonia de Henry é percebida na voz de Gabriel, que interpreta as palavras como se fossem realmente seus últimos segundos de vida, e berrando para Cynthia tocá-lo, com a série “Now, now now!”, concluí-se essa magnífica Maravilha com o órgão e a bateria fazendo um belo crescendo, que traz a última marcação de órgão, guitarra e bateria, entoando um tema clássico que remete ao tema de “Old King Cole”.
Nursery Cryme segue com “For Absent Friends”, uma curta vinheta acústica cantada por Collins, a primeira canção do Genesis a ter exclusivamente sua voz, e encerra o lado A com a Maravilhosa “The Return of the Giant Hogweed”, contando a história da terrível erva-daninha que assombrou os campos russos no final do século XVIII, e que é uma das primeiras canções da história do rock a gravar a técnica do tapping na guitarra.
No Lado B, temos “Seven Stones”, a terceira Maravilha do LP, com o órgão e o mellotron sendo o centro das atenções, além de bonitas passagens vocais, as curtas “Harold the Barrel”, um pop sem-vergonha nenhuma, mas muito animado, e “Harlequin”, outra canção acústica que apresenta o primeiro dueto vocal de Collins e Gabriel, encerrando com a Maravilha “The Fountain of Salmacis”, em um trabalho sensacional de variações com mellotron, guitarra e vocal, além do baixo de Rutherford soar forte durante toda a canção.
A bela capa de Nursery Cryme foi elaborada por Paul Whitehead, responsável também pela capa de Trespass, e tem como tema exatamente a história de “The Musical Box”, com Cynthia segurando um martelo em um campo de críquete, e diversas cabeças de crianças sendo as bolas, enquanto ao fundo, a babá passeia segurando uma espada. Na parte interna, Whitehead caprichou, desenvolvendo lindas ilustrações para cada uma das canções, as quais contém, além das letras, as histórias individuais, narradas por Gabriel.
Além da magnífica sessão instrumental, que por si só já vale o álbum, preciso entrar um pouco na importância histórica de “The Musical Box”, que afinal, foi minha justificativa para sua escolha como Maravilha nessa semana. O Genesis era uma das bandas emergentes do rock progressivo em 1971, e, graças a perspicaz visão de Gabriel, desenvolveu um estilo diferente, trazendo para o palco aquilo que as canções narravam, através de interpretações teatrais.
Tudo começou a acontecer por problemas na concepção de palco do Genesis. Como as canções tornavam-se cada vez mais intrincadas e complexas, as mesmas exigiam atenção máxima dos músicos.
Rutherford e Hackett decidiram tocar sentados, pois assim conseguiriam se concentrar e facilitar nas passagens musicais, que envolviam muitas trocas de instrumentos como violão e guitarra (baixo) para Hackett (Rutherford), com Rutherford passando inclusive a usar um instrumento de dois braços, um com um violão de 12 cordas e outro com o baixo elétrico.
Como Banks e Collins também obrigatoriamente tinham que tocar sentados, coube a Gabriel a tarefa de tentar tornar o palco do Genesis animado, já que a morosidade era grande. Porém, Gabriel era muito tímido, e demorou para sentir-se a vontade como frontman. Depois de muita paciência, eis que ele surpreendeu aos colegas pela vez primeira durante uma apresentação no Lincoln Festival, em maio de 1972. Durante o trecho final de “The Musical Box”, ele apareceu no palco com o rosto pintado de branco, uma grossa maquiagem nos olhos, na cor preta, um grande colar egípcio e joias, além de a parte da frente da cabeça raspada.
A imagem chocou tanto o público quanto os colegas de banda, que não sabiam do que ia acontecer, e chamou a atenção da imprensa, o que deu mais coragem para Gabriel continuar a expôr-se. A ação foi repetida em mais alguns shows,
Lentamente, Gabriel construiu encenações e representações para ajudar o público a entender o que se passava nas canções, e também chamando a atenção para ele. Durante a turnê de promoção de Nursery Cryme, apresentou diversas encenações teatrais para as canções do grupo, sendo que em “The Musical Box”, ele simulava Henry conversando com Cynthia após sair da caixa de música.
Essas encenações foram aprimoradas para a criação de fantasias, as quais foram utilizadas no palco no ínicio da turnê de Foxtrot, sendo a primeira delas exatamente para “The Musical Box”, quando, na noite do dia 28 de setembro de 1972, inspirado na capa do novo álbum, que estava para ser lançado dias depois, Gabriel deixou o palco durante o trecho instrumental que antecede o final da canção, e novamente, sem ninguém da banda ou da produção saber, voltou usando uma máscara de cabeça de raposa e um vestido vermelho.
Ali, ele interpretou pela vez primeira uma canção do Genesis com máscaras e fantasias, e deu o primeiro passo para o sucesso que consagrou a banda meses depois. Sobre isso, o vocalista declarou anos depois: “Lembro de estar muito nervoso quando entrei no palco durante ‘The Musical Box’. O público ficou chocado com a estranheza de um homem vestido com roupas de mulher e uma máscara de raposa, mas eu gostei bastante da experiência. Foi esse desempenho que me deu autoridade inquestionável dentro do Genesis“.
Collins também lembra do momento: “Quando estávamos tocando no Rainbow, havia na entrada do local uma foto de Peter com a cabeça de raposa na primeira página do Melody Maker. Aquilo fez com que nossos ganhos aumentassem bruscamente. Antes, ganhávamos 300 libras por noite. Depois, eram 600 libras por noite, o que era muito dinheiro para nós. Agora, as pessoas escreviam sobre nossos shows, e Gabriel forneceu a notícia para eles.”
A partir da turnê do quarto álbum do grupo, Foxtrot, cuja capa apresenta a figura da cabeça de raposa vestida de vermelho, e que contém a principal Maravilha Prog gravada pelo Genesis em sua carreira: “Supper’s Ready”, surgiram outras fantasias. Gabriel criou uma máscara de um idoso, utilizada no final de “The Musical Box”, que era a representação de Henry, além de encenar perfeitamente cada segundo de Henry fora da caixa musical, até sua morte, sempre com o pedestal do microfone deslizando pelo meio de suas pernas (em uma clara alusão a excitação e desejos sexuais do menino).
Diversas outras fantasias surgiram durante a mesma turnê, destacando o Homem-Morcego de “Watcher of the Skies” e o Homem-Flor de “Supper’s Ready”, entre outros que já foram apresentadas nesse texto, assim como as encenações e efeitos de palco aumentaram significativamente. Se antes o palco do Genesis era muito estático, com as performances de Gabriel havia um dinamismo que surpreendia show após show.
Na citada “Watcher of the Skies”, um jogo de luzes envolvia Gabriel durante a parte instrumental que encerra a mesma, e o ápice ficava por conta de “Supper’s Ready”, canção que encerrava a apresentação com muitas mudanças de fantasias, além de performances teatrais inéditas e estarrecedoras, trazendo Gabriel com maquiagem carregada, fogos de artifício e inclusive com alguns shows tendo Gabriel voando sobre o palco nos instantes finais da suíte, isso anos antes do Kiss aparecer com uma ideia similar.
A história de “Supper’s Ready” já foi narrada aqui, com detalhes que ajudam a esclarecer o por que de sua importância. Um ano depois de Foxtrot, o Genesis lançou Selling England by the Pound, o preferido dos álbuns do Genesis de nove a cada dez fãs. Desta forma, em setembro, teremos um Maravilhas do Mundo Prog especial com “Firth of Fifth”.
“Nursery Cryme” foi um salto e tanto em relação a “Trespass”, que já tinha sido uma estrada inteira a frente em relação a “From Genesis to Revelation”. Essa “The Musical Box” foi a primeira música do Genesis progressivo que ouvi, até então o máximo que tinha conseguido era chegar à trinca de discos do quarteto Banks/Collins/Hackett/Rutherford. Consegui um exemplar do “Nursey…” com um amigo e depois “The Lamb…” foi reeditado no Brasil. Mas “Nursery…” me impressionou bastante e me fez buscar os outros, que só conseguia em vinil usado a preços bem altos – e sem capas duplas, o que fazia com que a gente tivesse pouquíssima informação sobre as músicas. Mesmo as edições em CD brasileiras dos anos 90 eram bem ruins em termos de produção gráfica! Até hoje acho que nada há no disco que se compare ao impacto de “The Musical Box”, ainda que seja um dos meus preferidos da banda.
Para quem começou, assim como eu, a ouvir o Genesis “de verdade” com o petardo Foxtrot (que traz a inesquecível “Supper’s Ready”), descobrir o Nursery Cryme em seguida deve ter sido uma experiência recompensadora. “The Musical Box” faz parte do top 5 das minhas canções preferidas dessa fase antiga da banda com Peter Gabriel (que musicassa, por Deus), mas gosto também de “Seven Stones” e sua musicalidade que antecipa o maior clássico da banda, na minha opinião: “Firth of Fifth” (gravada em Selling England By the Pound, meu disco favorito do Genesis desde sempre), as mudanças de andamento/clima em “The Return of the Giant Hogweed” e a apoteótica finaleira com “The Fountain of Salmacis” (que, não sei como, parece ter inspirado o Evanescence a compor o seu hit cartão-de-visitas chamado “Bring Me to Life”). Depois descobri o mencionado SEBTP e pronto, tornei-me admirador confesso do Genesis (Era Gabriel, diga-se de passagem), e por fim, veio a decepção com o The Lamb Lies Down on Broadway (que vai completar 50 anos de lançamento em novembro de 2024), do qual já falei incontáveis vezes aqui na Consultoria que eu simplesmente não gosto talvez pela história por trás de seus bastidores, mas isso não vem ao caso… Este Nursery Cryme mostra o Genesis começando de vez a sua escalada para o sucesso, que com certeza teria muito para durar se não fosse pelo gigantesco e desenfreado egocentrismo do Gabriel perante os outros quatro membros durante a triste/sombria época do já mencionado disco TLLDOB…