Discografias Comentadas: David Bowie [Parte IV]
Por Marcello Zapelini
Hoje encerramos a nossa aventura pela longa discografia de David Bowie, abrangendo os álbuns finais de sua carreira (pós 1995).
1.Outside [1995]
Se The Buddah of Suburbia é por mim descrito como “inútil”, este álbum merece o adjetivo “pretensioso”. O que deveria ser o primeiro volume de uma série de discos experimentais em parceria com Brian Eno acabou não tendo continuação (na minha opinião, ainda bem). Ouvi o disco na época do lançamento, depois voltei a ouvi-lo no streaming, e com a aquisição da box Brilliant Adventures eu o incorporei à minha coleção. Confesso que o álbum me desafia: tentei de todas as formas gostar dele e não consigo. As músicas são entremeadas por vinhetas que estabelecem os “personagens” da história narrada neste disco conceitual que traz vários personagens que se entrelaçam na investigação do assassinato de uma garota, como Leon e o detetive Nathan Adler. O álbum traz velhos colaboradores (Mike Garson, Carlos Alomar) e outros nem tanto (Eardal Kizilçai, Reeves Gabrels). Com 19 faixas, entre músicas completas e vinhetas, e mais de 74 minutos, o disco é um pouco claustrofóbico, denso (ainda que cansativo), e tem bons momentos, como “Hallo Spaceboy” (que rendia bastante ao vivo e foi lançada em remix dos Pet Shop Boys), a regravação de “Strangers When We Meet”, ”No Control” (com ótimos vocais de Bowie), a melancólica “The Motel” (com um clima jazz acentuado pelos floreios do piano de Garson), “Thru’ These Architect Eyes” (uma das mais bem construídas), mas não chega a entusiasmar. Mike Garson brilha em “Heart’s Filthy Lesson” (um desperdício, pois a música é fraca) e na introdução de “A Small Plot of Land”, em que o vocal de Bowie impressiona – mas é outro desperdício, a música não vai a lugar nenhum. As vinhetas não se sustentam fora do contexto do álbum como um todo e existem muitas músicas que não acrescentam nada (certo, as letras ajudam a estabelecer a narrativa, mas as melodias não contribuem…). 1.Outside poderia ter rendido um filme ou mesmo uma HQ, mas como álbum musical não me convence. A turnê desse disco rendeu dois bons álbuns ao vivo póstumos, No Trendy Rechauffé e Ouvriez Le Chien, ambos lançados como parte da série Brilliant Live Adventures.
Earthling [1997]
O sucessor de Outside é ainda mais eletrônico – em alguns momentos, beira o excesso – mas tem composições melhores (que eu, pessoalmente, gostaria de ter a oportunidade de ouvir em versões sem tantas programações, samples, drum loops e sintetizadores). Baseado num fascínio temporário com o drum’n’bass, Earthling é possivelmente o mais experimental dos álbuns de Bowie, e não é sempre que estou em sintonia com ele – mas as últimas audições foram consistentes. O disco foi quase todo escrito em parceria com Reeves Gabrels e Mark Plati (coprodutores). Os destaques são a abertura com “Little Wonder”, que teria uma ótima versão ao vivo em “A Reality Tour”; “Battle for Britain (The Letter)”, uma boa música prejudicada pelo arranjo (e por uma repetição excessiva de efeitos), que traz um solo fantástico de Mike Garson no piano; o ritmo vertiginoso de “Dead Man Walking” só se beneficia com a eletrônica e os samples usados (vai entender!)! Aqui Bowie e seus parceiros foram bem econômicos nos efeitos e o resultado é melhor do que a média, e de novo Garson dá um show. Também entre os destaques está “I’m Afraid of Americans”, uma parceria entre Bowie e Brian Eno que é possivelmente a música mais conhecida do álbum. Por outro lado, “Looking for Satellites” não empolga muito, “Seven Years in Tibet” tem um refrão que não ajuda e o arranjo mais uma vez complica as coisas, e “The Last Thing You Should Do” era um bom conselho para o próprio Bowie, que não devia tê-la incluído no disco. “Telling Lies” tem momentos muito bonitos, que não combinam com o loop de bateria, mas acaba ficando no meio-termo. “Law (Earthlings on Fire)” é interessante, mas os vocais tratados não contribuem muito. Assim, há quatro boas músicas, duas mais ou menos, e três que não acrescentam; é pouco para um álbum de Bowie. Look at the Moon, um álbum ao vivo, foi gravado durante essa turnê e lançado postumamente na série Brilliant Live Adventures.
’hours…’ [1999]
Melhor álbum de David Bowie nos anos 90, em minha opinião, ’hours…’ começou como trilha sonora para um game (Omikron: The Nomad Soul) e contém dez músicas escritas em parceria entre ele e Reeves Gabrels – o que poderia parecer algo meio assustador à primeira vista, por Gabrels não é exatamente meu colaborador favorito dele. Gravado basicamente por Bowie, Gabrels, Mark Plati e Mike Levesque, o disco contém muitas belas melodias e os arranjos não empregam tanta eletrônica, e foi um dos primeiros discos completos a ser disponibilizado pela Internet. O álbum provocou reações diferentes dos críticos (alguns elogiaram, outros detestaram), mas na opinião deste que lhes escreve, é muito bom, focado na melodia (como deveria ser sempre, aliás) e tem belas composições, começando com a linda “Thursday’s Child”, com belos vocais de Bowie e Holly Palmer. “Something in the Air”, “Survive” (uma balada de cortar o coração), “Seven”, “The Pretty Things Are Going to Hell”, “What’s Really Happening”, a instrumental “Brilliant Adventure”, são outros destaques do disco. Bowie promoveu o álbum com uma turnê mundial, mas o lançamento seguinte de Bowie, Live and Well, inicialmente disponibilizado exclusivamente para o fã-clube oficial do cantor, foi composto exclusivamente por músicas de 1.Outside e Earthling e gravado em shows da turnê deste último (posteriormente, saiu na série Brilliant Live Adventures, que incluiu ainda dois shows da turnê de ’…hours’, Something in the Air e Live at the Kit Kat Klub). Como um todo, ’hours…’ é menos aventureiro e o ritmo das músicas pode ser um pouco mais lento do que os álbuns anteriores, mas é um belo álbum, com ótimas composições, e arranjos mais convencionais. Pena que a crítica tem sido cruel com o álbum, que tem aparecido bem baixo nos rankings de Bowie – mas não no meu.
Toy [2000 – lançado em 2022]
Após participar de um programa da série VH1 Storytellers (que rendeu um disco ao vivo lançado em 2009), Bowie decidiu revisitar seu catálogo de músicas de 1964 a 1970 e regravá-las com os músicos que colaboravam com ele, como Gail Ann Dorsey, Sterling Campbell, Mark Plati, Mike Garson e Gerry Leonard, entre outros. O resultado foi um álbum fantástico embalado na pior capa da carreira do cantor, em que músicas antigas como “Conversation Piece”, “Karma Man”, “I Dig Everything”, “Shadow Man”, “Can’t Help Thinking About Me” e a fantástica “Let Me Sleep Beside You” ganharam uma nova vida. O álbum se encerrou com “Toy (Your Turn to Drive)”, a única música nova, composta a partir de uma jam session improvisada quando a banda gravava um take para “I Dig Everything”. A EMI se recusou a lançar o disco, e Bowie saiu da gravadora; Toy só seria lançado na box set Brilliant Adventure [1992-2001], e posteriormente, numa box com três CDs contendo versões alternativas e mais algumas músicas, como “Liza Jane”, bem como gravações majoritariamente acústicas. Ao longo dos anos seguintes, várias das músicas gravadas para este projeto encontraram lançamento em vários singles e em edições especiais, mas o álbum como um todo merece ser ouvido com atenção. Toy é um excelente álbum que não pode faltar na coleção de nenhum fã de David Bowie e um bom argumento em favor das regravações que um artista faz de seu próprio material.
Heathen (2002)
Após a turnê de divulgação de ’hours…’, Bowie voltaria ao estúdio somente em 2001, para gravar mais uma vez com Tony Visconti. O álbum começa meio devagar com “Sunday”, mas ganha corpo com “Cactus”, que traz Visconti no baixo e Bowie em todos os outros instrumentos, inclusive a bateria! Trata-se de uma versão para uma música do Pixies, do álbum “Surfer Rosa”; David nunca escondeu que era fã da banda, e aqui aproveitou a chance para gravar uma música deles. Outras covers são para “I’ve Been Waiting For You”, do primeiro álbum-solo de Neil Young (e tocada ao vivo na primeira turnê do Tin Machine), que tem a participação de Dave Grohl na guitarra, e “I Took a Trip on a Gemini Spaceship”, de Normal Carl Odam, A.K.A. The Legendary Stardust Cowboy, um maluco do final dos anos 60 que foi uma das inspirações para Ziggy. Dentre as outras músicas compostas por Bowie (como “Sunday”), destacam-se “Slip Away”, balada dramática que é a mais longa do disco, “Slow Burn” (com David Torn fazendo uma bela introdução na guitarra) e “Afraid”, que são mais rockers e preparam para “I’ve Been Waiting For You”, em que a voz de Bowie evoca um pouco a original de Young. Mas “I Would Be a Slave” volta aos arranjos meio repetitivos de “Earthling”, estragando a música; o álbum continua ladeira abaixo com “I Took a Trip…” e melhora um pouco com”5.15 The Angels Are Gone”, mas depois de um começo tão bom (a sequência de cinco boas músicas de “Cactus” até “I’ve Been Waiting…” é o melhor do disco), a impressão é que faltou gás. A simpática “Everyone Says Hi” é boazinha, mas não está à altura da sequência mencionada. “A Better Future” também não chama muito a atenção, e a faixa-título encerra o álbum com outra música de qualidade. No final das contas, meio bom, meio fraco; “Heathen” é daqueles discos que, quando está nas melhores músicas, entusiasma o ouvinte, mas nas mais fracas acaba decepcionando. A turnê de lançamento foi relativamente curta, mas Bowie ficou satisfeito com os shows e embarcaria em uma mais longa após o lançamento de Reality em 2003.
Reality [2003]
Mais uma vez produzido por Bowie e Tony Visconti, Reality saiu em setembro de 2003 para coincidir com uma turnê mundial; aliás, o cantor deixou bem claro que o álbum foi gravado para ser apresentado ao vivo. Das onze músicas, duas são covers: “Pablo Picasso”, de Jonathan Richman (lançada no primeiro álbum do Modern Lovers), e “Try Some Buy Some”, que George Harrison compôs para Ronnie Spector. “Reality” é um disco menos complexo e mais direto que “Heathen” ou “’hours…’”, mas isso não é problema. Começando muito bem com “New Killer Star” e “Pablo Picasso”, “Reality” é um disco mais urgente, mais rocker, o que não significa que não tenha baladas de qualidade, como a angustiante “Looking for Water” e a frágil “Days”. “Fall Dogs Bomb the Moon” transporta-nos de volta aos tempos de “The Man Who Sold the World” e “Hunky Dory”, mostrando que Bowie conseguia manter um olho no passado – ainda que o vocal maduro não combine com as músicas dessa época. “Reality”, a faixa-título, coloca as guitarras em primeiro plano – e é impossível não lembrar de como teria ficado ótimo ter um Mick Ronson nessa música. “Bring me the Disco King” destacou o piano de Mike Garson, continuando a vibe de volta ao passado que invadiu a segunda metade do álbum, e encerra muito bem o disco Em 2004, David sofreu um ataque cardíaco e teve que se submeter a uma angioplastia; com isso, não apenas a turnê “A Reality Tour” seria a última de sua carreira, como o álbum seria o último por dez anos, interrompidos pelas costumeiras coletâneas, álbuns ao vivo (dentre eles A Reality Tour, gravado em dois shows em Dublin em novembro de 2003 e lançado em 2010), e box sets. Se Reality tivesse sido o último álbum dele, como por anos pareceu que fosse, teria sido uma despedida digna; mas ainda viria coisa melhor.
The Next Day [2013]
Quando ninguém esperava, Bowie ressurgiu com um novo disco de estúdio, dez anos após Reality. E que disco, amiguinhos. Coproduzido em parceria com Tony Visconti, que sempre soube tirar o melhor de Bowie em estúdio, The Next Day conta com a participação de muitos colaboradores antigos e recentes, como Earl Slick, Gerry Leonard, David Torn, Gail Ann Dorsey, Sterling Campbell, Zachary Alford e Tony Levin – apesar de todo o pessoal envolvido, a gravação transcorreu em segredo. O disco abre com a animada faixa-título, que nos leva de volta aos tempos mais simples do início dos anos 70 (como “Valentine’s Day”, outra canção saborosamente nostálgica) e segue em alto nível com “Dirty Boys” e “The Stars (Are Out Tonight)”. Após a fraquinha “Love is Lost”, a belíssima “Where Are We Now?” repõe o album nos eixos. Já “If You Can See Me”, com seu ritmo vertiginoso e caótico, divide minha opinião: em alguns momentos eu gosto muito dela, em outros ela me soa desnecessária. Mas a sequência com “I’d Rather Be High”, “Boss of Me”, “Dancing Out in Space” (mais uma que remete ao passado, mas lembra um pouco Iggy Pop do final dos anos 70), “How Does the Grass Grow?”, “You Will Set the World on Fire”, “You Feel So Lonely You Could Die” (que termina com a bateria citando “Five Years”) joga um sorriso permanente na cara do ouvinte. “Heat” encerra o disco com uma boa música que, entretanto, está um pouco aquém das anteriores. O álbum foi disponibilizado em uma edição regular com 14 músicas, uma DeLuxe com 17 (esta, também em vinil), uma Extra com dois CDs (dez músicas no extra, incluindo as três da DeLuxe e a exclusiva do Japão) e um DVD e, finalmente, o EP digital “The Next Day Extra”, com sete músicas do CD2 da edição Extra. “The Next Day” revisita o passado (até na capa, que se baseia na de “’Heroes’”), aponta para o futuro (“If You Can See Me” é um prenúncio do álbum seguinte), e provou que Bowie ainda tinha muitos coelhos para tirar da cartola. Após este álbum, Bowie lança a coletânea Nothing Has Changed, um bom panorama de toda a sua carreira, e a box set Five Years.
★ (Blackstar) [2016]
David Bowie deixou um presente de despedida aos seus fãs com este disco denso, pesado, melodioso quando necessário, perturbador em alguns momentos, impressionante do início ao fim, e comovente em cada segundo. ★ (Blackstar) foi dissecado por um texto primoroso de Mairon Machado aqui na Consultoria e tenho pouco a acrescentar a ele, por isso faço comentários sobre as músicas conforme minha opinião. Blackstar tem uma das mudanças mais atraentes de ritmo em toda a carreira de Bowie, após seu início melancólico. “’Tis a Pity She Was a Whore” soa como uma grande jam session com o vocal por cima, e Donny McCaslin solando seu saxofone como um insano. A belíssima “Lazarus” soma uma linda melodia com um arranjo levado no baixo de Tim Lefebvre, e é impossível não se emocionar com ela, tendo em mente o fato de que era um adeus. “Sue (Or in the Season of a Crime)” é uma música pesada cuja batida me lembra os experimentos eletrônicos dos anos 90, mas agora com um baterista de verdade e não um programador. “Girl Loves Me” é para mim a música mais fraca do disco, mas não compromete; há um pouco de eletrônica a mais no arranjo, mas de todo modo a melodia não me convenceu. Já “Dollar Days” diminuiu um pouco o ritmo, com lindo piano de Jason Lindner e mais um belo solo de sax de Jason Lindner. “I Can’t Give Everything Away” encerra o álbum deixando vontade de ouvi-lo novamente, em mais uma bela canção que me soa como uma pessoa caminhando em direção do horizonte, afastando-se de nós. “I got nothing left to lose”, canta Bowie em “Lazarus”. Que bom, mr. Jones. Você está livre como o blue bird da letra dessa música.
Depois deste álbum, os fãs teriam mais coletâneas, box sets, discos ao vivo, e Toy. Com mais de 400 músicas oficialmente lançadas, David Bowie deixou uma obra impressionante que continua a atrair fãs no mundo inteiro.
As reviravoltas dessa fase do Bowie são impressionantes. Vários discos bons, sendo para mim The Next Day o melhor deles. Ninguém esperava o que Bowie fez em 2013, um baita disco. E claro, Blackstar é a despedida perfeita. Obrigado pela citaçao ao meu texto Marcello, e parabéns por desvendar tão bem uma discografia tão ampla e vasta musicalmente.
Obrigado pelo comentário, Mairon! Seu texto sobre o Blackstar é fantástico, eu não podia deixar de citar.
Concordo contigo, The Next Day é o melhor disco dessa fase, rica em variações, rica em mudanças, infelizmente a última da carreira desse gênio do rock. Restam-nos os relançamentos e os arquivos, como as boxes que homenageiam o álbum de 1969, o Hunky Dory e a mais recente para o Ziggy. Bowie continuou um artista inquieto, em busca do som que ouvia na sua cabeça, até morrer. Fazer essa parte da discografia foi complicado, afinal estava me aproximando do fim da carreira do mestre – mas também foi compensador.