Datas Especiais: 20 Anos de The Neon God (Parte I – The Rise)
Por Mairon Machado
No ano de 2004, o W.A.S.P., liderado pelo sempre genial (e genioso) Blackie Lawless, resolveu fazer seu projeto mais ambicioso: criar um álbum conceitual em duas partes, a serem lançadas ambas no mesmo ano. Essa é a origem do aniversariante que venho aqui apresentar hoje e depois de amanhã para vocês, os clássicos The Neon God Part I: The Rise e The Neon God Part II: The Demise.
Voltando no tempo, em 1992 Lawless já tinha criado uma obra-prima conceitual chamada The Crimson Idol, a qual relatei sua história aqui. A história de Jonathan Aaron Steele teve influências diversas, inclusive do The Who (homenageado por Lawless no encarte do vinil, à época), sendo que por diversas vezes temos algumas lembranças de Tommy ao ouvir esse fantástico disco. Pois se anos depois o Who ampliou as suas óperas-rocks através de Quadrophenia (1973), o W. A. S. P. fez algo similar com esses Neon God.
Contextualizando o período histórico da banda, pós-lançamento de The Crimson Idol, Lawless manteve o grupo como um trio, tendo Bob Kulick (guitarras) e Frank Banalli (bateria) no excelente Still Not Black Enough (1995), um álbum pesado, onde Lawless extravasa seus sentimentos soturnos e sombrios, que caracterizou o que alguns chamam de Gothic Metal, o que agradou muitos e desagradou outros tantos. Com isso, inesperadamente eis que Chris Holmes voltou para o grupo. O guitarrista loiro fôra um dos pilares do W.A.S.P. nos anos 80, gravando os primeiros e aclamados discos W. A. S. P. (1984), The Last Command (1985), Inside the Electric Circus (1986) e The Headless Children (1989), além do ao vivo Live … in the Raw (1987), e acabou saindo do grupo por não concordar com a guinada “séria” que Lawless estava dando em suas composições.
Com o retorno de Holmes, houve uma reformulação no line-up do W. A. S. P., agora com Mike Duda (baixo, vocais) e Stet Howland (bateria, vocais). Nesse período, vieram o álbum de industrial metal Kill.Fuck.Die (1997), excelente por sinal, o festivo Helldorado (1990), e Unholy Terror (2001), além dos dois ao vivos Double Live Assassins (1998) e The Sting (2000), e então, Holmes pegou o boné (de novo!) para tocar blues (dizendo nunca ter tocado em Unholy Terror), e deixou Lawless novamente a ver navios.
Sem Holmes, e sob o drama dos eventos de 11 de setembro nos Estados Unidos, Lawless cria Dying for the World (2002), tendo na formação agora Darrell Roberts (guitarra e vocal), Mike Duda (baixo e vocal) e o retorno de Frankie Banali à bateria. Este mesmo time então vai para o estúdio registrar os dois Neon God (que ainda teve a participação de Stet Howland em uma única faixa, “Wishing Well”). Vamos então para o que a história de Neon God. Temos como personagem central Jesse Slane, um garoto órfão, abusado durante a infância pela mãe e em um orfanato, que descobre ter o poder de manipular pessoas, tornando-se assim um Messias para seus discípulos, os quais fazem parte do que Lawless chama de congregação.
Vamos ao encarte de Neon God para, nas palavras do próprio Lawless, entender o que estará acontecendo nos dois discos (em tradução livre): “Oh tell me my Lord, why am I here? Esta foi a única questão que a história inteira de Neon God foi construída. Embora esta (parte I) narre a ascensão de um falso Messias, ele é quase majoritariamente baseado nesta ideia que está na maioria do pensamento de todos. Por que de nossa existência? O que ela significa? Existe uma razão real para cada um de nós aqui afinal? Existe alguma grande proposta em nossas vidas? Somos bons ou maus, ou apenas peões em um jogo sem nenhum significado? Quem eu sou, ou eu sou o todo?“
Seguimos nas palavras de Lawless: “Esta é a história de Jesse Slane, este é seu questionamento. Ele pergunta-se sobre sua vida. ‘Irá minha vida significar algo quando eu morrer?’ É uma pergunta que todos nós fazemos, maioria das vezes em silêncio, quando sozinhos. É a mais sombria das perguntas que raramente falamos sobre com alguém. Está sempre lá … aquela vozinha em todos nós … que nunca se vai“. Encerrando a fala “Espero que aqueles que ouvirem esta gravação encontrem seu próprio significado na jornada que estão percorrendo. Certamente esta gravação não irá encontrar usto para você, mas talvez ajude a pensar sobre. Que O Senhor guie à nós todos“.
Vale lembrar que Lawless ainda não havia se convertido ao cristianismo, mas estava estudando bastante sobre a Bíblia e temas religiosos no período de composição de Neon God (Lawless se converteu no final da década 00). No encarte de The Rise, nada mais nada menos que 10 páginas são dedicadas a relatar a vida de Jesse James. Ele conta sua história em primeira pessoa, e farei um resumo, em tradução livre (deixando em inglês pontos que são nomes de músicas), do que é contado ali. O texto, na íntegra, deixo nas imagens abaixo.
Jesse se apresenta dizendo que veio de um lugar onde os sonhos da juventude são quebrados, o terreno baldio onde jovens corações são largados para morrer. Sigo nas palavras de Jesse (e fazendo um geral, pois o texto é realmente muito longo). “Meu pai era Robert. Não me lembro muito dele por que ele morreu quando eu tinha 6 anos. O que guardei dele é a Bíblia que ele me deu no meu aniversário de 6 anos … Milhares de vezes imaginei como minha vida teria sido diferente se eu tivesse tido mais contato com ele. Minha mãe era Mary e eu sempre me senti muito distante dela. Ela me teve, mas eu não tive ela. Depois da morte do meu pai, ela se afundou em álcool, heroína e crack se tornando uma viciada. Por um ano e meio, ela teve um homem diferente a cada noite, e todo o dinheiro que sobrou do meu pai ela gastou em álcool e cigarros. Seu vício fez perder nossa casa e viver em abrigos. Passei a viver como um escravo, preso aos seus abusos, e gritos de ‘você não é nada, você nunca será nada’.
Ela passou a acreditar que eu era o diabo, e com os dias contados, ela me abandonou no orfanato The Sisters of Mercy Boys Home, quando eu tinha 8 anos. Suas últimas palavras para mim foram ‘Nunca discutirei com um diabo’. Fui oferecido ao sacrifício para os deuses pagães do vício. Saí das correntes de sua escravidão para um novo mundo de escravidão. Era um orfanato católico, e aquilo para mim era o inferno na Terra relatado na Bíblia. Era um complexo em parceria com o estado, com uma parte sendo o orfanato e outra sendo um hospital de doentes mentais. Não era permitido que as crianças fossem no hospital, mas existiam relatos de que algumas foram parar lá. Ninguém sabia se era verdade.
A vida lá era horrível, nunca vi nada igual. Frio, úmido, feito de tijolos velhos e sem cor, de um cinza escuro. Um prédio enorme, de seis andares e cerca de 100 metros de comprimento. Eu ouvia sons de choros vindos de lá. Lembro de entrar e ficar tremendo. Nunca tinha visto uma freira tão de perto, e elas pareciam o Drácula de Bram Stoker. Elas tinham uma presença militar, como se fossem o próprio Deus. Depois compreendi que isso era feito para intimar, e acabei usando disto mais tarde. Os primeiros meses foram de agonia. Cada coisa, cada pessoa, era tudo muito estranho. Todos pareciam me olhar perguntando: ‘de onde você veio’. Eu não conhecia ninguém.
Da janela ao lado da minha cama eu olhava para o pátio e via um velho poço que era usado antes de a propriedade ter água corrente, conhecido como Poço dos Desejos (Wishing Well). Havia rumores de que mais de uma criança havia realizado ‘seu desejo’ se afogando ali, o que para alguns era a única saída. As crianças não gostavam de alguém novo, pois consideravam qualquer novato um concorrente para adoção. Morávamos juntos. Havia agressores, tratados de forma diferente, pois trabalhavam para as freiras. Se uma das crianças normais saísse da linha, as freiras usariam os valentões para aplicar a ação disciplinar, ou seja, eles iriam te dar uma surra. Era assim que a ordem era mantida por elas, menos uma: Sister Sadie!
Ela era Deus, a Governante Suprema, também conhecida como Santa Cruella. A Puta responsável. Dirigia o lugar com mão de ferro e ninguém questionava sua autoridade. Enorme, com cerca de um metro e noventa, pesando uns 120 quilos, parecia mais um homem do que uma mulher, causando medo em qualquer criança que a olhasse. Ela andava com um uniforme preto, carregando uma porra de uma régua o tempo todo, parecendo um general nazista da SS, por ironia, Sister Sadie. Fiz o melhor possível para não ser notado por ela. Comia sozinho, nunca fiz parte de um grupo, aprendi a usar a imaginação e criatividade no meu próprio mundo de amigos imaginários, dos quais eu era o líder, o Invisible Circus.
Aos 11 eu comecei a ficar rebelde e sem respeito a qualquer autoritarismo. Eu tinha me tornado uma espécie de animal. Um dia fui pego roubando algo da cozinha por um dos guardas, que me levou para uma das irmãs, para eu pagar meus pecados. Quando resisti à penitência pelos meus pecados e recusei a confissão, dizendo que estava com muita fome, a irmã ficou horrorizada. Considerado insubordinado, tomaram medidas apropriadas me levando para Sister Sadie. Uma vez considerado insubordinado, apenas uma limpeza oficial iria colocar a criança novamente no caminho certo, e variava de criança para criança. Para mim, foi uma eternidade de um ano.
Sister Sadie me levou para um prédio separado, longe do prédio principal, onde minha limpeza seria administrada três vezes por semana, sempre de noite. Ela me segurou com força pela nuca e me conduziu pela única porta daquele lugar esquecido por Deus, para uma sala escura e pequena. Eu senti um cheiro familiar em seu hálito que eu não sentia desde a última vez que estive com minha mãe: álcool. Ela bateu a porta e acendeu uma pequena luz vermelha, que iluminava muito pouco. A sala havia sido uma instalação de detenção (ou prisão) para o hospital manter e transferir pacientes com doenças mentais. Tinha enormes vigas no teto, e na viga central havia um antigo sistema de polias … Era feito com uma corrente de aço e um grande gancho na ponta para içamento. Ela amarrou minhas mãos atrás das costas, e amarrou meus pés com velhos fios elétricos, me fez deitar no chão e pegou o gancho, prendendo-o na corda que segurava meus pés.
Isso aconteceu em quase todas as noites, mas algumas noites eram diferentes. Às vezes, enquanto eu estava pendurado, ela simplesmente me batia. A bengala dela tinha uma longa haste de metal que era usada de várias maneiras. A favorita dela era aquecer em uma vela e depois bater em mim. Outras noites ela me abusava sexualmente de formas que nem consigo falar. O tormento continuou com ameaças de que que se eu contasse a alguém, ninguém acreditaria em mim. Um dia eu não suportei mais, e procurei Sister Ann Marie, responsável pelo centro médico. Contei todo o horror que eu estava suportando. Sister Sadie foi confrontada por ela, que determinou que eu deveria ir para o sanatório, já que estava perturbado mentalmente, e nenhuma criança racional faria tais alegações. Como ninguém ousava questionar sua autoridade, antes que pudesse ser levado, corri para o pátio e num salto desesperado, pulei no Poço dos Desejos. Meu desejo era deixar aquele lugar para sempre. Nunca mais vi a irmã Sadie em carne e osso. Mas ela estaria para sempre em meus pensamentos e sonhos.
Fiquei três dias em coma por conta do impacto com a queda. Durante dias, ao acordar, comecei a ter visões de quem eu realmente era. Revelações do meu verdadeiro destino e vislumbres de quem e o que eu acabaria por me tornar. Enquanto era vigiado 24 horas por dia, já que Sadie havia dito que eu era ‘potencialmente perigoso, delirante e possivelmente suicida’, fiquei em uma sala para novos pacientes por cerca de dois meses, até que determinaram que eu não representava mais perigo para mim mesmo. Assim, parei na enfermaria de adolescentes pelos próximos dois anos, chamada Asylum #9. Era um quarto retangular com 22 camas e grades nas janelas. Lá conheci ‘Spazmo’, cujo nome verdadeiro era Teddy, e com 13 anos, foi preso por estrangular a avó. Com o cérebro deteriorado pelas drogas que havia tomado antes e depois de chegar ali, ganhou o apelido de ‘Spazmo’. Este cara trabalhava para outro cara, chamado Billy. William Samuel Sims, também conhecido como ‘Serial Sam’. Mais um negligenciado pelos pais. Um cara tranquilo, inofensivo e muito bem educado.
Os pais de Billy eram ricos, e mandavam muito dinheiro, o qual Billy convertia em qualquer coisa que quisesse, inclusive drogas, e ‘Spazmo’ era seu ‘serviçal’, recebendo valium, percodina, codeína e ecstasy, especialmente ‘X’. O lugar era um inferno, e a única maneira de sobreviver lá era ficar fodido todo o tempo. Contei minha história para eles, que me contaram que haviam outras duas crianças que contaram a mesma história que eu. Uma morreu misteriosamente e a outra cometeu suicídio por overdose. Passei dois anos lá em coma de ectasy auto-induzido, e ao menos não sentia dor. Foi então que soubemos que Sadie havia sido encontrada morta, e com isso, Ann Marie me mandou de volta para o orfanato. Agora ela estava no comando. Para comemorar, decidimos fazer uma festa.
Havia um quarto separado, onde costumávamos ficar chapados, que chamávamos “Red Room of the Rising Sun”. Era o lugar mais legal que já vi, passávamos a maior parte do tempo lá, e acabei me tornando muito próximo de Billy. Porém, naquela noite, na festa de despedida, nós três ficamos muito chapados. Spazmo já havia desmaiado no chão. Billy me entregou um bilhete e disse que queria que eu lesse, porque ele iria dormir. Quando comecei a ler, Billy agarrou minha mão e ficou claro por que ele queria que eu lesse o bilhete. O bilhete dizia: ‘Estou feliz por você finalmente estar saindo deste inferno e ter a chance de ter uma vida real. Mas para mim só há uma maneira de sair daqui. Você foi o único amigo verdadeiro que já tive e nunca terei outro. Não ficarei mais aqui. Assinado: ‘Seu amigo para sempre, Billy’. Quando olhei, seus olhos estavam fechados e senti suas mãos escaparem das minhas. Encontrei ao lado de Billy um frasco vazio de pílulas para dormir. Ele havia tomado todas. Nunca mais tive outro amigo como ele.
Voltei ao orfanato no dia seguinte, e fugi menos de uma semana depois. Tinha 14 anos. Durante dois anos dormi em prédios antigos abandonados, em qualquer lugar que me desse abrigo. Lá conheci os indesejáveis, os descartáveis da sociedade, todos viciados de algum tipo, procurando escapar da dor. Era um tipo diferente de inferno e muitas noites eu dormia pensando que tudo que precisava era alguém que me amasse. Conheci muitas crianças que foram abusadas sexualmente, e se prostituíram para alimentar seus hábitos de consumo de drogas. Fui para cidades diferentes, mas era tudo praticamente igual, até que um dia conheci alguém que mudaria minha vida em todos os sentidos.
No centro de uma cidade, vi um grupo de umas cem pessoas vendo a mágica de um artista de rua, que parecia hipnotizar as pessoas. Ele era bom, muito bom. Foi então que ele, no meio da multidão, me chamou para auxiliar em uma próxima tarefa. Ele me entregou um envelope lacrado e perguntou se nos conhecíamos, o que afirmei não ser verdade. A tarefa foi pedir o número para três pessoas diferentes, e então, ao final, o valor somado deu exatamente o que estava no papel dentro do envelope lacrado (14026). Todos ficaram chocados. Depois de mais alguns truques, e o encerramento da apresentação, enquanto guardava suas coisas, me aproximei e perguntei: ‘como você fez isso?’. Ele sorriu, falou que procurava alguém que não iria o confrontar e se apresentou: ‘Meu nome é Judah Magic’. Conversamos muito.
Ele havia estudado e também sabia que tinha um dom desde a infância, que era o de sentir as energias das pessoas, e me perguntou se eu queria continuar com ele. Como estava interessado nessas coisas há muito tempo, Judah se tornou meu mentor. Ele era um cara intenso, não muito grande, mas agressivo mentalmente. Tinha uma energia que você podia sentir, uma daquelas pessoas com uma presença incrível, e as pessoas tinham medo dele por causa disso. Ele também não tinha onde morar e ficou órfão muito jovem, então criamos um vínculo instantâneo. Houve uma atração magnética entre nós e nos tornamos amigos inseparáveis.
Ficamos muitas vezes chapados juntos, e conversávamos sobre a vida, religião e pessoas. Sob efeito do ácido, tinhamos conversas profundas sobre o conceito de Céu e Inferno e do Bem e do Mal em todas as pessoas. Ambos sabíamos que a maioria das pessoas poderia ser manipulada de alguma forma. Alguns mais do que outros. Nós dois sabíamos que o mundo iria te matar se você deixasse. Decidimos que mataríamos o mundo… juntos! Passamos a viajar de cidade em cidade durante o ano seguinte, e comecei a ler sobre metafísica e ocultismo. Sempre soube que tinha fortes habilidades de percepção incomuns e estava trabalhando duro para desenvolver minhas habilidades físicas, desde que cai no Poço dos Desejos.
Minha personalidade e presença tornaram-se mais fortes que as de Judah e, onde quer que íamos, as pessoas eram atraídas por mim. O aluno se tornou o Mestre. Passamos a ‘recrutar’ indivíduos para fazer parte do nosso grupo, pessoas fortes mas sem rumo, raivosas mas frágeis, bem como crianças que nunca conheceram o amor, mas procuravam uma ‘razão para existir’, que era eu. Eu queria que o mundo soubesse meu nome. Tudo começou basicamente como uma gangue. Vieram Robbie Taylor, JoJo Stone e Mad Max Morrison, todos eram ladrões, traficantes de algum tipo e com talento para alcançar a grandeza, mas não acreditavam em si mesmos. Eu era o líder deles, lhes dei novos nomes e me referia a eles como meus ‘discípulos’, para reforçar a crença deles em mim. Com um título como esse e com controle mental e drogas; eles fariam qualquer coisa que eu mandasse. Eles acreditavam que eu tinha o poder de curar e que podia ler seus pensamentos.
Haviam duas meninas, Lucy e Mary, também fugitivas de infância, prostitutas adolescentes, e mais ladrões e mendigos… todos implorando por amor e um lugar ao qual pertencer. Eles faziam qualquer coisa para agradar, roubavam comida e cozinhavam, limpavam nossas roupas e traziam outras meninas de vez em quando para nossas celebrações pagãs. Essas aconteciam aos sábados. Eu falava sobre amor e liberdade de espírito. Os alucinógenos (LSD e Ecstasy) eram uma parte importante dessas celebrações, e durante elas aconteciam orgias ritualísticas. Nessas orgias, uma garota era escolhida como sacrifício. Não ser sacrificada mortalmente, mas sexualmente e por vontade própria.”
Durante uma dessas celebrações, fiquei visivelmente ausente. Quando apareci havia uma pequena pomba morta. Tudo parou quando soprei nas narinas da pomba e ela levantou e voou para longe. Os discípulos se sentaram, eu peguei uma faca e gravei a palavra deus na minha testa. Lucy e Mary lamberam o sangue do meu rosto enquanto eu transava com elas. Os demais caíram de joelhos e começaram a me adorar como o novo Messias. O último rosto que vi naquela noite foi o de Judah … sorrindo para mim.
Passamos a viajar de um lado para outro, como ciganos, e em todos os lugares haviam pessoas para me ouvir falar e realizar milagres, além de novos convertidos. Montamos nossa própria tenda coberta que acomodava mil pessoas, e eu pregava sobre amor, celebração e liberdade da mente. Curava pessoas de doenças e enfermidades pela cura pela fé. Com o passar do tempo, a tenda coberta foi substituída por arenas, e filmes meus foram vendidos em vídeos e DVDs, com Judah sendo meu braço direito. O mundo me amava… mas agora éramos um grande negócio.
A magnitude do nosso ministério tornou-se verdadeiramente assustadora, e passei a ter pequenos vislumbres de mim mesmo, e do que estava fazendo aos que me rodeavam, especialmente Judah. Surgiu um círculo vicioso de perguntas (Teria eu sido colocado na Terra para fazer o que estava fazendo? Eu era Deus? Um profeta? Ou apenas um homem com minha própria mensagem nascida sem amor? Eu sou mau? Eu sou o grande enganador? Deus sabe que eu existo?) se tornou uma tortura viva. Eu estava no Jardim do Éden? Se eu fosse, qual era eu?“
Encerro aqui a “tradução” da longa história desenvolvida nas páginas iniciais do encarte de Neon God Part I, e de antemão, peço desculpas ao leitor. Mas é crucial termos a noção de quem é Jesse, pois somente com a leitura do texto, as canções que virão passam a fazer sentido dentro da história. Tendo então este resumo em mente (lembrando que o texto vai bem mais que isso), podemos agora passar para as músicas de Neon God, desenvolvendo a história, a qual apresento com algumas traduções livres e interpretações que, caso você discorde das mesmas, é só usar os comentários com respeito, sempre.
Lançado em 6 de abril de 2004, The Neon God Part I: The Rise é um disco que, para o fã do W. A. S. P., vai rapidamente trazer similaridades à The Crimson Idol. Seja pela excelente qualidade musical, seja pelas faixas curtas que lembram vinhetas, seja pela bateria endiabrada de Banalli. O todo da obra acaba sendo diferente do álbum de 92 devido principalmente as performances de Lawless, que estava cantando como nunca, e de Roberts, que por mais que seja um grande guitarrista, fica um pouco aquém da de Kulick.
A primeira faixa do álbum, “Overture” se inicia por uma entrada épica, com teclados e metais, trazendo guitarra, baixo e bateria para apresentarem alguns dos principais riffs que irão surgir ao longo dos dois álbuns. A presença dos metais já me remete diretamente a Quadrophenia, mas os mesmos não surgem por muito tempo, e o que predomina é um amplo resumo de Neon God. Violões trazem a voz rasgada de Blackie Lawless no papel de Jesse, perguntando a Deus por que veio ao mundo (“Oh Lord, why I am here? Lost in all our pain and sorrow. Are we to live in pain and fear? Oh Lord, why I am here” – “Oh Senhor, por que estou aqui? Perdido em toda a nossa dor e tristeza. Devemos viver com dor e medo? Oh Senhor, por que estou aqui“), na breve “Why Am I Here”, e então começa a pauleira de “Wishing Well”.
A letra retrata um Jesse revoltado com os abusos e sua vida infeliz no orfanato, implorando a Deus para acabar com seu sofrimento, que o leve de uma vez. O instrumental é uma pancada que facilmente remete a The Crimson Idol, com grande destaque para a bateria, violentíssima, e os gritos eufóricos de Lawless. A faixa passa rápida, levando ao riff pegado de “Sister Sadie (And the Black Habits)” (que já havia sido apresentado em “Overture”) na primeira das faixas mais tensas do álbum. Aqui é o início dos relatos de abuso que Jesse sofre no orfanato. Enquanto Jesse desabafa que “I don’t believe, I don’t deceive, I don’t conceive at all” (“Eu não acredito, não me engano, não concebo nada“), Sister Sadie adota uma postura autoritária e agressiva.
A virada que a canção dá a partir dos 4 minutos é surpreendente, com a guitarra tornando-se pesada, e os vocais rasgados e longos de Lawless interpretando o papel de Sister Sadie são arrepiantes. Nesse trecho, a irmã fala: “What I do to thee is what was done to me … And do you feel there’s a God for real. Your only God is me” (“O que eu faço com você é o que foi feito comigo… E você sente que existe um Deus de verdade. Seu único Deus sou eu“). Grande destaque para o solo de Roberts, e novamente a canção muda. Riffs tensos trazem os gritos de Jesse, e sua raiva é extrapolada em altos e rancorosos vocais diante da irmã Ann-Marie “Are you mad, I’m going fast, habits in black no coming back. No Mercy me the hell is real. Why me ya seee she’s here killing me” (“Você está louca, estou indo rápido, hábitos de preto não tem volta. Sem misericórdia, o inferno é real. Por que a mim, você vê, ela está me matando“), para encerrar com a repetição do refrão. Claramente, a freira sádica e pedófila tem em seu título uma referência ao Marquês de Sade, cujo nome originou a palavra sadismo. Após os quase 8 minutos dessa incrível e polêmica (pela letra) faixa, estamos imersos na história.
Voltamos então ao riff inicial de “Overture”, inclusive com os metais, e o início da viagem religiosa de Jesse, diante do Circo Invisível (Invisible Circus), Jesse fala “Welcome to my world to my kingdom of make believe, I’m your new Messiah you’ll worship at my feet” (“Bem-vindo ao meu mundo, ao meu reino de faz de conta, sou seu novo Messias, você me adorará aos meus pés“), seguindo para sua conclamação diante do Circo Invisível, onde eles clamam por Jesse. Aqui é Jesse vislumbrando o seu futuro status como Messias, e começando a pensar sobre usar este poder sobre as pessoas.
Violões e teclados resgatam o Jesse em discussões com Deus na segunda vinheta do álbum, “Why Am I Nothing”, perguntando porque nunca foi nada, objeto do amor de ninguém, para então, uma guitarra com efeitos de eco trazer o dedilhado de “Asylum #9”. Jesse é levado para a enfermaria, e eis que surge um novo personagem, Doctor D, retratado com voz rouca por Lawless. Ele e as enfermeiras auxiliam Jesse a se curar pós-tentativa de suicídio. As enfermeiras entoam o nome da canção em alto e bom som. Uma música veloz, frenética, com frases grudentas tanto das enfermeiras (“You’re here for life … gimme your life … I’ll give you life …” – “Você está aqui por sua vida… me dê sua vida … eu te darei a vida“) quanto do doutor (“I’ll fix ya right … It’s all you gonna do, I’ll Make it right … I wanna welcome you. Are you in pain or just merely misguided?” – “Eu vou te ajudar… É tudo que você vai fazer, eu vou ajudar… Quero te receber. Você está com dor ou apenas equivocado?“) Jesse surge ao final da canção, choroso, lembrando do pai (“I saw my father and me no pain in the Well of Sights .. I wanna die … my well where wishing dies” – “Eu vi meu pai e eu, sem dor no Poço das Vistas .. Eu quero morrer … meu poço é onde o desejo morre“). Como a voz de Lawless muda tão drasticamente na forma de cantar é algo incrível, e que ele aprimorou ainda mais em relação a The Crimson Idol. Dois belos solos de encerram a faixa, e vamos para “The Red Room of the Rising Sun”, trazendo mais um novo personagem, Billy.
Os riffs espaciais da guitarra soam bem diferentes de tudo o que ouvimos até então na obra do W. A. S. P., para representar o clima viajandão de Billy, o colega de Jesse que o faz viajar pelas “maravilhas” que ele enxerga no mundo vermelho (não à toa, a capa deste volume 1 é vermelha). “Trails of rainbows round, lost asylums of forgotten sons, will you rise up will you touch your God, the sky’s slip into the rising seas and drown your Neon One” (“Trilhas de arco-íris redondas, asilos perdidos de filhos esquecidos, você se levantará, você tocará em seu Deus, o deslizamento do céu para os mares crescentes, e afogue seu Neon One“).
Esta sala vermelha, na cultura norte-americana, significa uma sala onde ocorrem crimes como assassinatos, torturas e estupros. É Billy quem incentiva Jesse a seguir com sua ideia de se tornar um Messias “Open the doors to your mind and hide in your dreams. The Red Room is laughing, the Red Sun is happy. … The Red Room is crying … Touch the faces of God and roll on into the Red Room and free your Neon One” (“Abra as portas da sua mente e esconda-se nos seus sonhos. A Sala Vermelha está rindo, o Sol Vermelho está feliz. … A Sala Vermelha está chorando … Toque os rostos de Deus, entre na Sala Vermelha e liberte seu Neon One“). Surge então o Deus Neon, com o clima todo da canção muito psicodélico, e repito, diferente de qualquer coisa que você já ouviu antes no grupo.
Uma bela faixa, que leva aos teclados e a voz chorosa de Billy em seus últimos momentos de “vida”, durante “What I’ll Never Find”, linda faixa, com outro excelente solo de Roberts. Na letra, Billy pede para Jesse segurar sua mão enquanto ele vai para “o outro lado”, pós-festta alucinógena de Jesse, Billy e Spazmo. As palavras finais de Billy são emocionantes: “Can you feel the pain slowly leaving me, will you hold my hand and ease me to the other side … Can you hear me in the night? … Can you feel me say goodbye?” (“Você pode sentir a dor me deixando lentamente, você pode segurar minha mão e me levar para o outro lado … Você pode me ouvir durante a noite? … Você pode me sentir dizendo adeus?). Tocante!
Após o ato dramático da morte de Billy, a vinheta “Someone to Love Me” retorna ao Jesse depressivo, que lamenta sua solidão “All I need was someone to love me …” (“Tudo o que eu precisava era alguém para me amar“), com a voz de Lawless chorosa sobre camadas de teclados e um singelo riff de guitarra, e rapidamente vamos para “X.T.C. Riders”, hardzão clássico dos primeiros tempos de W. A. S. P., com muita velocidade e claro, XTC sendo também uma sigla para ecstasy. O personagem se afunda no ecstasy, em um caminho sem volta, ao mesmo tempo que encontra Judah, o qual é representado pela voz carregada de eco. “You’ll be so far out of control, you’ll be out of your mind. you’ll feel nothing, it’s taking a hold of you, won’t ya leave all your pain behind … You’ll feel my X is taking control” – “Você estará tão fora de controle, você estará fora de si. Você não sentirá nada, isso está tomando conta de você, você não vai deixar toda a sua dor para trás … você irá sentir meu X tomando o controle“). O papel de Judah na vida de Jesse vai muito mais do que ser responsável pela introdução ao mundo das drogas, já que ele é o incentivador de Jesse a se tornar um Messias, e aqui é importante novamente citar que as informações centrais não estão somente nas letras, mas principalmente no encarte apresentado acima.
A acústica “Me & the Devil” é a última vinheta, e apenas repete o nome da faixa por alguns segundos, para então chegarmos a “The Running Man”, no qual Jesse depois de se auto-conclamar o novo Messias para seus discípulos, percebe que não é nada daquilo, enquanto Judah não o deixa fazer isso. A faixa é veloz e agressiva, e destaco frases como “take your love away from me” (“tire seu amor de mim“), que me remete muito a “Love reign o’er me”, do Quadrophenia, na forma como Lawless canta), e principalmente, “you’re the only God they know” (“você é o único Deus que eles conhecem“)
A primeira parte de The Neon God encerra-se com “Raging Storm“, faixa em que Jesse pede, novamente, amor, dizendo “Give me love to rage in me, can you see, only love is saving me” (“Dê-me amor para me enfurecer, você pode ver, só o amor está me salvando“). Arrastada no seu início, onde Jesse clama por este amor perdido para Deus, a canção vai ganhando força, para explodir na imploração pelo amor “Give me love to rage in me can you see? Only love is savin me, give me love, oh love that rage in me” (“Dê-me amor para me enfurecer, você pode ver? Só o amor está me salvando, dê me amor, oh o amor que me enfurece”). Jesse encerra este pedaço de sua história da mesma forma que começou: triste e carente, porém implorando por redenção “Holy war for my soul, scars of memories remains … tel me why am I here, storms of crossroads and rage” (“Guerra santa pela minha alma, cicatrizes de memórias permanecem… diga-me por que estou aqui, tempestades de encruzilhadas e raiva“).
Neon God Part I atingiu a 26 posição na Finlândia e 14 nos charts britânicos de Rock & Metal, além da 87 posição na parada alemã. Depois de amanhã, trago o encerramento de Neon God, com o aniversariante do dia de hoje, 28 de setembro: The Neon God Part II – The Demise.
Tracklist
1. Overture
2. Why Am I Here
3. Wishing Well
4. Sister Sadie (And The Black Habits)
5. The Rise
6. Why Am I Nothing
7. Asylum #9
8. The Red Room Of The Rising Sun
9. What I’ll Never Find
10. Someone To Love Me
11. X.T.C. Riders
12. Me & The Devil
13. The Running Man
14. Raging Storm