The Who: Cinco Músicas Injustiçadas
Por Marcello Zapelini
Se a história do The Who tivesse terminado de uma vez por todas em 1982, quando a banda encerrou sua turnê de lançamento de It’s Hard, essa seção teria sido mais fácil de escrever. Entretanto, começando em 1989, The Who se reuniu diversas vezes para turnês com o trio de membros originais, Roger Daltrey, Pete Townshend e John Entwistle, até a morte deste último no começo do século XXI. Ainda assim, The Who já tinha lançado diversas coletâneas oficiais – e várias nem tanto – e com isso diminuiu a lista de músicas que poderiam fazer parte das injustiçadas.
A turnê de 1989 foi responsável por retirar várias músicas com potencial para fazerem parte da nossa lista, e as subsequentes não foram muito diferentes, apesar de os velhos hits serem parte considerável do setlist. Novas coletâneas foram lançadas, com uma delas (The BBC Sessions) sendo responsável por eliminar mais músicas; dentre essas coletâneas, duas box sets (30 Years of Maximum R&B e Maximum A’s & B’s, a primeira uma tentativa de sumarizar a carreira do grupo em 4 CDs, e a segunda trazendo todos os compactos do grupo) eliminaram mais algumas candidatas. Por fim, diversos álbuns ao vivo foram lançados, e, embora a maior parte tenha repertórios razoavelmente semelhantes, versões ao vivo completas de Tommy e Quadrophenia foram oficialmente lançadas. Ainda assim, algumas músicas parecem não aparecer nos lançamentos oficiais.
Assim, compilou-se esta lista de cinco músicas injustiçadas do The Who, concentradas na primeira parte da carreira do grupo. Os dois álbuns de estúdio lançados no século XXI, Endless Wire e WHO, não foram contemplados, porque possuem muito menos promoção em shows ou participação em antologias. Mas há uma razão adicional: ainda que não sejam exatamente discos ruins, é preciso admitir que não estão à altura do que o grupo original fez de melhor (ainda que ganhem de It’s Hard, que pôs fim à carreira deles em 1982), por isso foram deixados de lado. Só para relembrar, os critérios para inclusão de músicas nessa seção são os que o Micael Machado adotou nos artigos anteriores: a música não pode ter sido lançada como single, nem constar de disco ao vivo official ou bootleg (ao menos que eu conheça), não pode ter versão de outro artista (se for o caso, não pode ter grande repercussão no meio musical), e tem que agradar o autor o suficiente para que ele a julgue merecedora de mais atenção do que tenha recebido da imprensa, dos fãs ou mesmo da banda.
- It’s Not True – My Generation (1965)
A terceira música do lado B do primeiro álbum do The Who é um rock animadinho com direito às harmonias vocais de Pete e John em contraponto a Roger, e como a maioria das músicas da banda nessa época, traz uma bateria bastante pesada de Keith Moon. O piano de Nicky Hopkins é um dos destaques do arranjo dessa música inocente e ainda meio primitiva, mas que soa bem direitinho no álbum (mesmo que “ensanduichada” entre duas covers, “Please Please Please” e “I’m a Man”, respectivamente de James Brown e Bo Diddley). A letra é divertida e traz o protagonista pedindo à sua garota que não acredite no que falam dele (ele não matou seu pai, não tem onze filhos e nem é meio chinês!). “It’s Not True”, é claro, não está à altura de “My Generation”, “The Kids Are Alright” ou “A Legal Matter”, mas não compromete em nada o bom disco de estreia do The Who, e o fato de não ser pinçada para compilações não quer dizer que ela seja ruim – tem coisa melhor no disco, mas ela merece ser ouvida por qualquer um que se interesse pelo grupo. Na Super DeLuxe Box Set dedicada a My Generation, “It’s Not True” aparece nas versões finais mixadas em mono e estéreo, mas não há nenhuma versão alternativa disponível nos CDs 3 e 4; entretanto, a demo de Pete foi incluída no CD 5. O setlist.fm registra duas versões ao vivo de “It’s not True” em 1965 e 1966, a última gravada para a TV sueca, o que me leva a crer que possa existir discos piratas com ela, mas não encontrei nenhum.
2. Sunrise – The Who Sell Out (1967)
Esta bela balada acústica faz parte do terceiro LP do The Who, e não aparece em nenhuma das muitas coletâneas oficiais da banda, como se pode verificar pelo site oficial e pelas discografias no Discogs e na Wikipedia. Com vocais de Pete Townshend e acordes no violão que remetem a Tommy, que seria lançado posteriormente, “Sunrise” traz uma letra triste e romântica que lamenta a garota cruel que roubou o coração do protagonista – e o faz não querer amar novamente. Verdade seja dita, a música não combina muito com The Who Sell Out; Pete confessou em entrevista que a ideia de construir o disco como se fosse um show de radio derivou de uma insegurança sua, pois ele acreditava não ter músicas suficientes para o terceiro LP da banda! Mesmo a recente box set dedicada ao disco, em seus cinco CDs, não traz nenhuma versão alternative ou demo da música, que aparece duas vezes (junto com o resto do disco), nas mixagens em estéreo e mono. De acordo com o setlist.fm, “Sunrise” só teria sido apresentada ao vivo uma vez, num show em um colégio de Overland Park, Kansas, em novembro de 1967. O fato de ela ser praticamente um número solo de Pete Townshend pode explicar o aparente desprezo da banda por ela, mas de todo modo se trata de uma bela melodia, muito bem executada e com um arranjo simples que destaca com justiça o vocal melancólico de seu autor.
3. They Are All in Love – The Who By Numbers (1975)
Outra bonita balada que está “enterrada”, dessa vez no lado B de um dos discos menos comentados do The Who (ao menos do seu período clássico). A rigor, à exceção de “Blue Red and Grey”, esse lado B é recheado de músicas pouco conhecidas do grupo, como “Success Story”, “How Many Friends” e “In a Hand or a Face”. “The Who By Numbers” foi promovido pela última turnê do grupo antes da morte de Keith Moon, e não há registro de apresentação ao vivo de “They Are All in Love” nem durante essa tour, nem nas subsequentes. A música soa meio nostálgica, numa vibe que também contagia a mais famosa “Squeeze Box”, mas a letra é ambígua; por um lado, evoca um sentimento de solidão por parte do protagonista, por outro lado parece lamentar a falta de inspiração para compor ao mesmo tempo que reconhece que a música está mudando, ao falar nos punks (a quem recomenda “stay young and stay high”) e dizer que ele está apenas reciclando lixo. É interessante ver que nessa música Keith Moon soa bastante domesticado – mas, na verdade, The Who By Numbers não é um disco marcado por um bom desempenho do baterista, que andava mal de saúde na época por causa dos excessos. Na minha opinião, “They Are All in Love” merecia maior sorte ao longo dos anos, e não merece o esquecimento a que foi relegada.
4. You – Face Dances (1981)
John Entwistle escreveu essa música que, para que encontrasse lugar em Face Dances, precisou ser cantada por Roger Daltrey – e este saiu-se muito bem nela, que é um pouco atípica na produção do baixista, uma vez que a letra é bastante amargurada, sem o senso de humor sombrio que o caracteriza. Não sei se John estava se queixando de Pete ou de Roger, mas o fato é que ele pede para ser salvo, ainda que admita que é tarde demais para mudar. A música é razoavelmente pesada, em especial nas guitarras, o que a torna um destaque em um álbum em que a guitarra soa bastante anêmica na maior parte das composições. É um fato conhecido que Face Dances não aparece numa posição elevada em nenhuma lista dos melhores discos do The Who, mas tanto esta quanto a mais conhecida “The Quiet One” fazem com que John tenha sido autor de duas das melhores músicas do LP. “You” não apareceu em nenhum dos shows que a banda fez nas turnês de Face Dances e It’s Hard, e por ter seu vocal gravado por Roger, não rolou nos shows do grupo em que John participou posteriormente até sua morte. Mas ele a interpretou em suas turnês solo, em especial em 1988 e 1996. A DeLuxe edition do álbum Left for Live, gravado em 1998 e lançado no ano seguinte, traz a John Entwistle Band tocando-a ao vivo, mas é sintomático que a edição regular não a traga. Independentemente disso, “You” é uma boa música em um disco que muita gente despreza simplesmente por não ter Keith Moon, e embora seu autor tenha lhe feito justiça, The Who não o fez!
5. I’ve Known no War – It’s Hard (1982)
It’s Hard é o pior disco do The Who, verdade seja dita; mas isso não significa que não haja coisas legais nele, como “It’s Hard”, “Dangerous”, “Cry if you Want” e esta canção injustiçada. A bem da verdade, a única música que pode ser considerada famosa no álbum, sendo apresentada com frequência ao vivo e aparecendo em coletâneas, é “Eminence Front”, mas ela nunca me chamou a atenção (injustiça é ela ser mais conhecida do que as que eu citei, hehehe). Sete das músicas do álbum foram interpretadas na turnê de 1982 (e em alguns shows posteriores), mas esta nunca apareceu em nenhum setlist. O disco, como o anterior, trouxe bastante teclados nos arranjos, mas “I’ve Known no War” é uma das poucas em que eles estão bem integrados ao som do grupo, especialmente no interlúdio instrumental do meio. Gosto bastante do vocal potente de Roger, que interpreta a letra (bastante pessoal, alias) escrita por Pete, em que ele fala sobre ter nascido logo depois do final da Segunda Guerra Mundial – e por isso não conhece a guerra. Entretanto, a letra nada tem de esperançoso, porque, se ele vier a conhecer a Terceira Guerra, será porque um botão será pressionado, haverá o brilho fugaz de uma bola de fogo no céu e nenhum grito de guerra será ouvido, pois não dará tempo. Pete podia andar pouco inspirado na composição das melodias, mas ainda estava afiado nas letras.
Essas são algumas músicas injustiçadas do The Who, na minha opinião. Agora é a vez dos leitores comentarem quais outras a banda gravou que mereciam uma sorte melhor ou que poderiam ser mais discutidas por aí!
Não sou um profundo conhecedor do Who (banda da qual gosto muito, mas só me “aprofundei” mesmo nos álbuns ao vivo e nas coletâneas), mas, pelo visto, tenho MUITO a aprender ainda sobre a banda, porque não lembro de ter ouvido NENHUMA das músicas que o Marcello escolheu! Não sei se isto exemplifica o mérito do autor por conhecer tão a fundo a (relativamente longa) discografia desta verdadeira instituição britânica, ou se é a demonstração do meu “fracasso” como ouvinte do “rock clássico” dos anos 60 e 70… de todo modo, vou ali me punir no cantinho do pensamento e volto depois, em uma outra postagem!
Obrigado pelo comentário, Micael! Espero que, ao ouvir essas músicas, você concorde com as minhas escolhas. The Who era uma banda muito difícil de se conseguir quando eu comecei a colecionar LPs, pois os discos clássicos estavam fora de catálogo e eram caríssimos no mercado de segunda mão; a coisa só melhorou mesmo quando o CD se popularizou. Ainda assim, a banda tem umas duas dúzias de coletâneas quase idênticas em termos de repertório, fazendo com que aqueles que mergulham nos álbuns originais acabem tropeçando em músicas bem menos conhecidas e que mereciam algum destaque.