Foi lá por 1987 ou 1988 que um amigo meu apareceu em Pedro Osório (cidade do interior do RS onde eu morava à época) com os vinis do EP Pânico em SPe do LP Adeus Carne, de uma banda de São Paulo chamada Inocentes. Eu, já conhecedor do punk rock através de audições de discos de bandas como Ramones, Dead Kennedys, Sex Pistols e outros, fui logo conferir aquelas preciosidades (à época, era muito difícil conseguir um vinil de banda nova, geralmente só se fosse emprestado de algum parente que morasse na capital). Foi amor à primeira “orelhada”, e faixas como “Ele Disse Não”, “Pátria Amada” e “Pânico em SP” entraram para a galeria de “clássicos” do meu repertório roqueiro. Depois viriam os discos Miséria e Fome e Inocentes (com os músicos nus na foto de capa, algo que sempre achei meio constrangedor), os últimos que acompanhei logo no lançamento. O grupo embarcou no mundo dos registros independentes, eu embarquei na audição de outros sons, e nossos caminhos se afastaram um pouco.
De lá para cá, muita coisa aconteceu: o grupo lançou mais alguns discos, na maior parte do tempo com Clemente (voz e guitarra) e Ronaldo (guitarra) à frente, e em 2014 chegaram em Porto Alegre acompanhados por Nonô (bateria) e Anselmo (baixo). Clemente havia virado guitarrista e segundo vocalista da Plebe Rude (um dos mais importantes grupos do punk de Brasília, estando presente no início do movimento ao lado do Aborto Elétrico), e até se envolveu com a televisão, tendo sido diretor artístico do saudoso MuSiKaOs e apresentador do Estúdio Showlivre, além de ganhar o respeito de todos os envolvidos com o rock nacional pelo apoio a bandas tanto consagradas quanto do underground nos programas por onde passou. O próprio Inocentes ganhou uma enorme exposição (principalmente no Sudeste do país) com a faixa “Cala a Boca”, do disco Embalado a Vácuo, de 1999, e continuou rodando constantemente pelos palcos do Brasil inteiro.
Menos os de Porto Alegre, que nunca haviam recebido um show da banda até aquela segunda-feira, 14 de abril, quando o quarteto aportou no Opinião para participar do projeto Segunda Maluca, como parte da turnê de divulgação do então reente disco, Sob Controle, lançado no final de 2013. Com ingressos a preços bastante acessíveis, foi incompreensível o reduzido número de espectadores que se reuniram na melhor casa de shows da capital gaúcha para prestigiar uma verdadeira lenda do punk rock nacional, ainda mais que a abertura seria realizada por outro grupo lendário do estilo, o gaúcho Pupilas Dilatadas.
Completando trinta anos de estrada em 2014, este trio (a época formado por Felipe Messa na guitarra e vocal, Rogério Bittencourt na bateria e Leonardo Duprates no baixo) entrou em cena pouco depois das 22:30h para, em pouco mais de trinta minutos, detonar um punk com traços de hardcore que empolgou os poucos aventureiros que já se encontravam no local. Misturando composições mais antigas (como “Porões e Garagens”, “Psicose”, ” Maníaco Depressivo” e “Obsessão”) com canções que vieram a ser lançadas em seu próximo registro, Mundo Kaos, de 2014, como “Noite Hardcore” e “Síria” (que tem Leonardo nos vocais principais em dueto com Felipe), o grupo deu o seu recado de forma competente, e ajudou a esquentar aqueles que enfrentaram a fria noite de outono gaúcho para conferir o som da banda.
Passava das 23:30h quando a voz de um locutor soou no sistema de som, anunciando o início do show dos Inocentes. O grupo, que já estava posicionado no palco, começou sem enrolações, mandando a clássica “Rotina” logo de cara. A partir daí, foram pouco mais de setenta minutos de muito suor, pogo e diversão pelas dependências do Opinião. Misturados a músicas mais “recentes”, como “A Cidade Não Para”, “Desequilíbrio” (onde o baixo apresentou um pequeno problema, logo resolvido), e a própria “Cala a Boca” (onde Clemente, antes de tocar a canção, respondeu de forma bem divertida a um fã que berrava a todo pulmão o nome da música, usando a frase “seu mal educado, sou mais velho que você”, como se o sujeito estivesse mesmo mandando o vocalista se calar) ou a covers como “Restos de Nada” (do grupo de mesmo nome, onde o vocalista foi baixista nos anos 1980), “Franzino Costela” (do Sex Noise) e a conhecida “São Paulo” (do 365), clássicos do porte de “Garotos do Subúrbio”, “Miséria e Fome”, “Expresso Oriente” e (principalmente) “Pátria Amada” (anunciada por Clemente como “uma música que Raul Seixas gravou quando eu tinha quinze anos”, e onde a banda fingiu que se retiraria do palco logo depois da introdução, sendo então chamada de volta em coro pelo pessoal) e “Ele Disse Não” me fizeram voltar à adolescência, e ao meu velho quarto na casa dos meus pais, onde ouvia estas canções sempre que podia.
Antes de “Intolerância”, Clemente vocifera que “existe um câncer corrompendo a sociedade, chamado neonazismo”, e grita em alto e bom som: “foda-se o neonazismo!”. Já em “Não Acordem A Cidade”, Nonô saiu de sua bateria e veio à frente do palco, onde ficou tocando percussão no braço da guitarra de Ronaldo por um bom tempo. Estas foram poucas das atrações “extra-musicais” do show, mais focado na execução com garra e “sangue nos olhos” de músicas marcantes e extremamente importantes para o punk rock nacional, com o evidente carisma de Clemente contagiando a todos, e os incansáveis Ronaldo e Anselmo sempre se movimentando muito pelo palco, com Nonô segurando tudo lá atrás na base da porrada nas peles e pratos (com a sonoridade geral sendo de excelente qualidade, como é praxe no Opinião)!
A mais que clássica “Pânico em SP” encerrou a primeira parte da apresentação, e, a partir daí, foi só festa no opinião, com o grupo interpretando dois covers do Clash para terminar de vez com a noite (“Should I Stay Or Should I Go” e “I Fought The Law”). Mas o pessoal não queria que eles fossem embora, então voltaram para tocar “Blitzkrieg Bop”, dos Ramones, e “Ace Of Spades”, do Motörhead (com Clemente sofrendo para imitar o timbre de Lemmy Kilmister), encerrando, aí sim, uma apresentação muito mais do que “agradável”, para citar a expressão que o locutor utilizou ao introduzir o grupo e também ao encerrar a festa!
Foi uma noite para ficar na memória, em especial porque tive a oportunidade de encontrar os músicos no camarim, e agradecer pessoalmente por tantos anos de boa música e dedicação à causa do bom e velho punk rock. Os “poucos e maus”, como fomos chamados por Clemente à certa altura do show, que comparecemos ao local não queremos esperar mais tanto tempo por uma noite como aquela! Salve, salve-se quem puder!