Box-set: Joy Division – Heart and Soul [1997]
Por Micael Machado
Apesar da reduzida discografia, o Joy Division é, ainda hoje, objeto de culto dos seguidores musicais do grupo, muitos deles sequer nascidos quando o conjunto acabou em 1980. Surgido sob o nome Warsaw na cidade inglesa de Manchester, em 1976, o quarteto formado pelo vocalista e ocasional guitarrista Ian Curtis, pelo guitarrista e ocasional tecladista Bernard “Barney” Sumner, pelo baixista Peter Hook e pelo baterista Stephen Morris se tornou um dos pilares do chamado pós-punk britânico, estilo que serviria de base para o surgimento do gothic rock, da new wave norte-americana e de muito do pop e do rock influenciados por instrumentos eletrônicos na década de 1980. Se os fãs não se cansam de ouvir e re-ouvir a obra deixada por Curtis e seus asseclas, a melhor porta de entrada ao universo musical da banda para os não iniciados na sonoridade do grupo ainda é o box set Heart and Soul, lançado lá fora em 1997, e ainda à espera de uma edição nacional. Reunindo praticamente todas as gravações de estúdio feitas pelo grupo, boa parte das faixas ao vivo disponíveis no mercado até então e raridades exclusivas como demos e faixas retiradas de bootlegs e raras e quase esquecidas fitas cassetes, a caixa de quatro CDs é um verdadeiro “must” para aqueles que possuem curiosidade em se aprofundar na sonoridade quase sempre soturna e melancólica dos ingleses, bem como conhecer as letras e poesias de Ian Curtis, considerado um “poeta atormentado” por seus seguidores, e um dos grandes letristas de sua geração.
Unknown Pleasures, a estreia do Joy Division
No primeiro CD, temos a íntegra do álbum Unknown Pleasures, de 1979 (a estreia da turma), além de faixas presentes na compilação Still, lançada em 1981, e outras retiradas de EPs e singles lançados entre 1978 e 1979. Nas vinte e uma canções espalhadas por setenta e sete minutos, temos um belo panorama da evolução do grupo, partindo de um punk rock pouco mais do que tosco (“Ice Age”, “The Kill” e “Interzone”) até chegar a um dos pilares do que viria a ser conhecido como gothic rock na década seguinte (aquelas músicas belas e melancólicas onde a alegria nas melodias passa longe de aparecer), em faixas como “New Dawn Fades“, “Day of the Lords”, “Candidate”, “I Remember Nothing” e “Autosuggestion”. Mas a maior parte do disco é composta por perfeitos exemplos do pós-punk inglês, onde o baixo tem, por vezes, um destaque maior do que a guitarra, e a bateria normalmente é seca e marcada (sendo os vocais lúgubres e graves de Ian a cereja do bolo para tornar a banda um símbolo do movimento). Canções como “Insight” (um dos muitos destaques), “Wilderness”, “Exercise One” ou “The Only Mistake” parecem ter sido compostas com a “cartilha” do estilo debaixo do braço dos músicos, mas os maiores destaques vão, paradoxalmente, para aquelas faixas que conseguem colocar um toque “dançante” e “alegre” à notável seriedade dos arranjos, como “Digital“, “Disorder”, “Shadowplay“, “Transmission” e “She’s Lost Control“, as quais, não por acaso, viraram “hinos” da curta discografia do grupo, ficando sempre dentre as citadas como “preferidas” pelos fãs dos ingleses.
Closer, o segundo e último álbum de estúdio
O disco dois reúne, ao longo de dezessete músicas em setenta e seis minutos, a íntegra do disco Closer, de 1980, que seria o último registro de inéditas lançado sob o nome Joy Division. Comparecem também outras composições presentes na compilação Still, além de faixas retiradas de singles lançados no mesmo ano de 1980. Em seu segundo registro, o grupo cravou seu nome dentre os principais representantes do pós-punk, em clássicos do estilo como “A Means to an End”, “Heart and Soul” (que dá nome ao box set), “Twenty Four Hours” e “Colony”, além de pela primeira vez dar destaque aos teclados de Barney (em “Isolation”, na tristonha “Decades” e na linda “The Eternal“, duas das faixas mais melancólicas de um disco nem um pouco alegre). A seleção incluída na bolachinha deste box ainda reúne as faixas do single Licht und Blindheit, a mais “dançante” “Dead Souls” e a beleza lúgubre de “Atmosphere“, duas composições que se tornaram clássicos da discografia do Joy Division, além de incluir uma regravação mais “animada” para “She’s Lost Control”. Mas nenhuma das canções citadas conseguiu superar “Love Will Tear Us Apart“, penúltima faixa deste segundo CD, e que foi lançada em single em junho de 1980 (pouco mais de um mês depois da morte de Ian), levando o nome do grupo para as massas, sendo que a imensa maioria daqueles que nunca ouviram com atenção a discografia do Joy Division costumam associá-lo a esta canção, a qual, de forma bastante irônica, é muito mais ensolarada e alegre do que todo o restante do catálogo do grupo. Sem dúvidas, chega a ser até engraçado uma formação tão lúgubre ter ficado marcada por sua canção mais alegre, mas, assim é o mercado.
O conteúdo da caixa Heart and Soul
Nos setenta e oito minutos do disco três, começam a surgir as primeiras atrações para os fãs de longa data do conjunto, afinal quatorze das vinte e quatro faixas da bolachinha são exclusivas deste box set. Dentre demos (“Shadowplay”, “Transmission”, “Ice Age”), versões alternativas para faixas já conhecidas (“Dead Souls”, “Something Must Break”) e gravações exclusivas para rádios (“These Days”, “Candidate”, “The Only Mistake” e uma versão inicial de “Atmosphere” intitulada “Chance”), temos um olhar mais “cru” sobre faixas que seriam depois lapidadas no disco de estreia e nos primeiros compactos dos ingleses, mostrando que clássicos não nascem prontos, precisando ser burilados e aparados no decorrer do processo de composição. Há também faixas retiradas de singles (a instrumental “As You Said“, cheia de elementos eletrônicos), da coletânea Still (“Walked in Line“, que apareceria remixada na compilação), ou ainda das famosas “Peel Sessions” que os grupos britânicos gravavam com frequência para a rádio BBC de Londres (“Exercise One”, “Colony” e o hino maior “Love Will Tear Us Apart”), e, até mesmo, nas quatro faixas iniciais, a íntegra do primeiro EP do Joy Division, intitulado An Ideal for Living e lançado em 1978, o qual traz uma sonoridade muito diferente da que a banda adotaria um ano depois, ainda muito próxima do punk (e sem muita preocupação com as melodias), com a voz de Curtis quase irreconhecível (longe do seu grave característico), e praticamente sem apresentar traços da melancolia e do pós-punk presentes no registro de estreia. É também neste terceiro CD que encontramos as demos para “Ceremony” e “In a Lonely Place (Detail)“, a quais, em 1981, seriam regravadas para compor o primeiro single do New Order (mais sobre este grupo logo ali abaixo no texto), as quais são as últimas composições a contar com a participação de Curtis na curta carreira do Joy Division.
O Joy Division ao vivo: Bernard Sumner, Ian Curtis, Stephen Morris e Peter Hook
O CD 4 traz, em setenta e seis minutos, quatorze faixas gravadas ao vivo ao longo de 1979 (e mais outras cinco registradas em 1980), todas inéditas até então, sendo as mais atraentes as dez primeiras, registradas a 13 de julho de 1979 na sede da gravadora Factory, em Manchester (as quais seriam relançadas, acrescidas de outras duas ausentes deste box, como disco bônus da edição remasterizada de Unknown Pleasures, em 2007). Ficaram de fora de Heart and Soul algumas gravações ao vivo lançadas oficialmente (dentre elas um cover para “Sister Ray“, do Velvet Underground, presente na compilação Still, e outras onze faixas gravadas na Birmingham University em 02 de maio de 1980, as quais foram lançadas oficialmente no mesmo disco), além das demos gravadas ainda sob o nome Warsaw (e que apareceriam no auto-intitulado álbum lançado em 1994), bem como a íntegra dos registros póstumos Preston 28 February 1980 (de 1999) e Les Bains Douches 18 December 1979 (de 2001) – ambos depois reunidos na caixa Fractured Box – e dos discos bônus das reedições remasterizadas de Closer e Still lançadas em 2007. Mas isto não inviabiliza de forma alguma o valor desta compilação, que ainda conta com um livreto de oitenta e quatro páginas com muitas fotos, textos sobre a carreira e a importância do Joy Division, as letras de todas as músicas presentes nos CDs e uma completíssima relação de discos, livros e vídeos relacionados ao grupo e que tiveram lançamento oficial até aquela data, colocados junto aos CDs em uma embalagem extremamente atraente a quem se interessar em adquirir este box.
Visão da caixa Heart and Soul aberta
Em 18 de maio de 1980, na véspera de uma excursão americana que poderia levar o nome do grupo a se tornar ainda maior, Ian, que tinha diversos problemas pessoais (retratados de forma magistral no filme “Control”, de 2007, dirigido por Anton Corbijn), se enforcou em sua casa, acabando também com a banda da qual era o vocalista. Mesmo abalados pela perda do amigo, os três músicos remanescentes decidiram seguir em frente, chamando Gillian Gilbert (esposa de Stephen Morris) para os teclados, e, com Barney assumindo a posição de cantor no novo quarteto, surge então o New Order, que viria a se tornar um dos maiores nomes do mundo da música, com sua mistura de rock, dance music e experimentos eletrônicos. Mas isto já é história para uma outra matéria…
Track List:
CD 1:
1. Digital
2. Glass
3. Disorder
4. Day Of The Lords
5. Candidate
6. Insight
7. New Dawn Fades
8. She’s Lost Control
9. Shadowplay
10. Wilderness
11. Interzone
12. I Remember Nothing
13. Ice Age
14. Exercise One
15. Transmission
16. Novelty
17. The Kill
18. The Only Mistake
19. Something Must Break
20. Autosuggestion
21. From Safety To Where…?
CD 2:
1. She’s Lost Control (12″ version)
2. Sound Of Music
3. Atmosphere
4. Dead Souls
5. Komakino
6. Incubation
7. Atrocity Exhibition
8. Isolation
9. Passover
10. Colony
11. Means To An End
12. Heart And Soul
13. Twenty Four Hours
14. The Eternal
15. Decades
16. Love Will Tear Us Apart
17. These Days
CD 3:
1. Warsaw
2. No Love Lost
3. Leaders Of Men
4. Failures
5. The Drawback
6. Interzone
7. Shadowplay
8. Exercise One
9. Insight
10. Glass
11. Transmission
12. Dead Souls
13. Something Must Break
14. Ice Age
15. Walked In Line
16. These Days
17. Candidate
18. The Only Mistake
19. Chance (Atmosphere)
20. Love Will Tear Us Apart
21. Colony
22. As You Said
23. Ceremony
24. In A Lonely Place (detail)
CD 4:
1. Dead Souls
2. The Only Mistake
3. Insight
4. Candidate
5. Wilderness
6. She’s Lost Control
7. Disorder
8. Interzone
9. Atrocity Exhibition
10. Novelty
11. Autosuggestion
12. I Remember Nothing
13. Colony
14. These Days
15. Incubation
16. The Eternal
17. Heart And Soul
18. Isolation
19. She’s Lost Control
É inenarrável o prazer de ler uma resenha com argumentos compatíveis com a importância do Joy Division, que mantém sua relevância influenciando inúmeras bandas mundo afora. Joy Division soube aproveitar a triologia berlinense de David Bowie para compor uma obra única e atemporal. Além disso influenciou Renato Russo, principalmente no quesito dança no palco. Parabéns MM! Obs.: tem uma versão matadora de New Dawn Fades na trilha sonora do filme 24 hours, que fala sobre a cena musical inglesa, reunindo Bernard Sumner, Moby e Billy Corgan que emociona muito, ainda mais por ser ser ao vivo.
Puxa, obrigado pelas palavras, António! Eu não conheço esta versão que você cita, mas vou atrás para conferir. Aliás, acredita que eu ainda não consegui assistir ao 24 hours? Estou me devendo esta, pois todos falam bem dele! Grato pelo comentário!