Maravilhas do Mundo Prog: Uriah Heep – Salisbury [1971]
Por Mairon Machado
Formado em 1969, o Uriah Heep notabilizou-se no início da década de 70, mais precisamente em 1972, com os álbuns The Magician’s Birthday e Demons and Wizards, os quais apresentaram uma sonoridade fortemente calcada no órgão Hammond e no peso das guitarras, e com letras falando sobre magia e misticismo que acabaram inclusive erroneamente fazendo com que alguns setores da imprensa classifica-se o grupo com uma certa ligação ao satanismo.
No final da década de 70, o grupo sofreu uma grande transformação musical, que afetou bastante o som do grupo, peregrinando pelo pop, o AOR e até mesmo o Metal mais pesado que dominou o início da década de 80. Com a entrada do vocalista Bernie Shaw em 1988, o Uriah finalmente construiu uma nova face, a qual vem carregando até os dias de hoje, voltada para um hard rock não tão pesado quanto na década de 70, mas sim um som bem trabalhado e capaz de agradar tanto aos velhos quanto aos novos fãs.
Porém, antes do sucesso, o grupo peregrinou por outras áreas sonoras. em seus três primeiros álbuns, o grupo apresentou desde o mais tradicional blues (“Lucy Blues”, de … Very ‘Eavy … Very ‘Umble, o primeiro disco, de 1970), passando pelo folk (“Lady in Black”, de Salisbury, lançado em 1971) até psicodelia lunática de Londres (“Shadows of Grief” , de Look at Yourself, lançado em 1971), e foi exatamente no meio dessa mutação musical que o grupo passava que acabou rolando um pequeno flerte com o progressivo, concebendo uma Maravilhosa cria chamada “Salisbury”.
Foi lá que, ao ler o livro David Copperfield, de Charles Dicken, o Spice mudou para Uriah Heep, uma homenagem aos cem anos da morte do autor britânico.
O quarteto produziu uma série de canções, até que Box decidiu que a entrada do Hammond poderia incrementar ainda mais o som deles, na linha do que o Vanilla Fudge estava fazendo nos Estados Unidos com o álbum Renaissance (1968). O primeiro músico a ocupar o posto de tecladista do Uriah foi Colin Wood, seguido pelo ex-colega de Newton no The Gods, Ken Hensley. Hensley também era um guitarrista de mão cheia, tocando slide como poucos, e seu casamento com as composições de Byron e Box foi imediata, e logo em seguida, partem para a conclusão do álbum.
Porém, Napier acabou sendo substituído por Nigel Olsson, baterista do grupo de Elton John, que então foi responsável por finalizar o disco. A estreia da banda ocorre em 1970, com … Very ‘Eavy, … Very ‘Umble, um disco bastante pesado e inovador, que gerou o primeiro clássico para os britânicos, “Gypsy”, faixa que já abre o LP com uma potência descomunal. O lançamento americano trouxe uma capa bastante diferente, assim como uma pequena modificação no set list, com a entrada de “Bird of Prey” no lugar de “Lucy Blues”.
A imprensa caiu em cima, criticando bastante o som dos jovens músicos, inclusive com a famosa citação da Rolling Stone americana, afirmando que cometeria suicídio caso a banda fizesse sucesso. Porém, a boa sequência de apresentações continuava. Uma mudança na formação ocorreu, com a entrada de Keith Baker no lugar de Olsson, que voltou para o grupo de Elton John (sendo inclusive o responsável pelas baquetas no clássico Goodbye Yellow Brick Road, de 1973). A nova formação então, entre outubro e dezembro de 1970, gravam o ambicioso segundo álbum, Salisbury.
Lançado em janeiro de 1971 (e em fevereiro do mesmo ano nos Estados Unidos), Salisbury destacou-se por conta da incrível evolução que o grupo tinha na parte das composições, méritos principalmente de Ken Hensley. Também é importante ressaltar que assim como a estreia, a capa do lançamento americano, assim como o set list, são diferentes em relação ao lançamento britânico.
O álbum na sua versão britânica abre com a pancada “Bird of Prey”, com os vocais de David Byron revelando-se agressivos, complementados ainda por vocalizações agudas que tornaram-se uma das marcas registradas da carreira do Uriah. A balada psicodelia “The Park” possui um lindo momento jazzísitico, do qual o solo de Hammond é o que mais fascina os ouvidos. Em “Time to Live”, temos uma canção mais pesada, com Box exibindo-se com o wah-wah, e o lado A encerra-se com a clássica “Lady in Black”, animadíssima faixa acústica cantada por Ken Hensley, que facilmente tornou-se um hino na carreira do quinteto.
O lado B abre com a veloz “High Priestess”, onde o que brilha são as guitarras gêmeas da dupla Box / Hensley, além do último fazer misérias com o slide. E eis que chegamos na Maravilhosa suíte que dá nome ao álbum. Logo de cara, a imponência dos metais da orquestra assombram o recinto, acompanhados pelo Hammond de Hensley. Um breve tema no oboé marca a entrada das vocalizações, enquanto os metais simulam uma espécie de riff. Outro breve tema, agora executado apenas pelas trompas, é seguido por um longo acorde de Hammond, que estoura em um tema feito ao mesmo tempo pelos metais e Hammond, em um arranjo encantador.
A entrada da bateria marca o surgimento do primeiro riff de “Salisbury”, com os metais e o Hammond sendo o centro das atenções. Enquanto o andamento quase marcial da bateria conduz as intervenções dos metais e as passagens do órgão, a guitarra passa a solar timidamente, e assim, constrói-se a base que irá acompanhar a voz de Byron.
Dela, nasce uma longa sequência instrumental, que começa com um veloz duelo de guitarra e órgão, enquanto baixo e bateria acompanham galopeando pelas caixas de som, e com diversas interferências da orquestra. O andamento jazzístico de Newton e Baker apresentam o gigante solo de Hammond, no qual Hensley abusa de notas velozes enquanto a orquestra circunda seu instrumento com passagens sombrias e enigmáticas. Ao mesmo tempo, vale destacar a performance precisa das escalas de Newton. Um crescendo arrepiante é realizado pela orquestra, causando uma explosão sonora digna das grandes orquestras dos tempos áureos das Big-Bands, encerrando esse trecho instrumental com mais uma série de notas repetidas por metais e guitarra.
“Salisbury” modifica-se abruptamente com a entrada do Hammond, o novo condutor da canção, que puxa um novo riff, o qual é repetido pelo baixo. A orquestra faz viajantes passagens, trazendo a guitarra de Box com notas tímidas e breves, tocadas com a presença do wah-wah. É aqui que começa a preparação para o show particular de Box.
Antes, Byron retorna para soltar a voz, intercalado pela presença de fagote, oboé e dos metais, sempre com o andamento cavalgante do baixo e bateria, que resgatam parte dos riffs apresentados na introdução. A angústia e curiosidade gerada pela suíte aumentam enquanto Byron solta sua voz, e é incrível novamente a genialidade do arranjo, com a flauta surgindo entre as frases de Byron inesperada e magnificamente.
Eis que Box resolve dar as caras, e impiedosamente pisoteando o wah-wah, sola endiabrado sua Les Paul, em escalas velozes, bends agudos e vibratos que acabaram virando um ponto de referência para quando cita-se as qualidades técnicas de Box. O que ele constrói nessa série de três solos realizados em um andamento de quatro passagens cada um, intercalados por vocalizações e belas passagens orquestrais, é de se fazer comer o chapéu. A personalidade que o menino de apenas vinte e três anos coloca em seu solo, além de uma precisão e feeling raros, não tem comparação, e uma pena que poucos deem valor para o hoje gordinho Box.
Uma série de notas repetidas entre orquestra, guitarra, bateria, baixo e guitarra retorna ao riff inicial, trazendo novamente os vocais de Byron, que repete as primeiras estrofes de “Salisbury” para encerrar essa Maravilhosa suíte com uma série de repetições feitas por órgão, orquestra, baixo e bateria, culminando então com a orquestra sob batidas que aumentam de velocidade até Byron estourar as caixas de som com um grito agudo e dolorido, enquanto a pancadaria pega ao fundo com a orquestra, órgão, bateria e guitarra.
Ok que outros grupos já tinham feito a mistura rock/orquestra anteriormente, inclusive gerando belos resultados como “Atom Heart Mother“ e “In Held ‘Twas In I“, ou então álbuns inteiros como Deep Purple (Concerto for Group & Orchestra) ou Yes (Time And a Word), mas nenhum deles fez uma junção tão incrivelmente pesada quanto o Heep.
O Heep seguiu seu caminho, com Iain Clark (ex-Cressida) no lugar de Bajer. Esse novo time lançou Look At Yourself ainda em 1971, e depois, firmando-se com sua formação clássica, com Byron, Box, Hensley, Gary Thain (baixo) e Lee Kerslake (bateria, vocais). Essa formação lançou os principais discos do grupo (Demons and Wizards e The Magician’s Birthday, ambos de 1972, Sweet Freedom, de 1973, e Wonderworld, de 1974, além do essencial Live, de 1973), e colocou o Heep como uma das principais bandas do hard setentista, obrigatória na casa de todos os admiradores de boa música, e que em um passado distante, fez um flerte Maravilhoso e exclusivo com o progressivo.
Belo texto recuperando essa obra-prima. Salisbury é um disco excepcional e a faixa-título é uma das músicas mais fantásticas desse período. É uma pena que nunca se teve uma versão ao vivo com boa qualidade disponível, pois o trabalho de Ken Hensley era excelente!
Marcello, nunca ouvi uma versão ao vivo. Se puder me passar o link, agradeço. Certamente não tem orquestra né
??
A maioria das versões ao vivo é bem ruim em termos de qualidade sonora, e a edição em CD duplo do Salisbury traz uma no CD 2. A melhor gravação disponível no YouTube para mim é a de Zurique em 71. Segue o link: https://youtu.be/E7AyVcWm4ao
Só conheço uma versão ao vivo orquestrada, que o Ken Hensley e o John Lawton fizeram em 2001: https://youtu.be/8W2VOMNgEUw
Essa também não é lá essas coisas na gravação, mas é sensacional!
Este é um álbum sensacional e em boa parte muito subestimado. Ótimo texto, como de costume.
Valeu Daniel. Abração!!