O Som da Virada: Dos Anos 60 Para os Anos 70
PorRonaldo Rodrigues
Existe algo intrigante com os números. A simples mudança na contagem de 1 ano comove as pessoas, as leva a celebrar e fazer um retrospecto, pensar em novas perspectivas e sonhos. Ainda que, como diria Drummond, muitos aguardem um decreto da esperança para que os sonhos se realizem e façam efetivamente muito pouca coisa a respeito, é inegável que o próprio estabelecimento de calendários e datas reflete a necessidade intrínseca da humanidade de estabelecer ciclos. Eu, particularmente, sou muito afeito a datas. Mas do que um transpassar de períodos, elas são a medida da transformação. Se a passagem de 1 ano para o outro reflete esse estado de mudanças, a passagem de década é ainda mais emblemática em muitos sentidos.
Mudanças muito importantes na música popular também ocorreram próximas das viradas de década – o nascimento do rock n’ roll e do jazz modal no fim dos anos 50, a ascensão do punk-rock e da disco music no fim dos anos 70, o grunge no fim dos anos 80 e início dos anos 90, dentre muitos outros exemplos possíveis.
Me fascina a transição da década de 1960 para 1970, em termos de música. Os números são o retrato de uma época efervescente de criação musical. Poderia discorrer laudas e laudas sobre as metamorfoses do blues-rock, do jazz-rock, a transformação da música negra norte-americana, mas falarei mais especificamente sobre o rock psicodélico.
Críticos se dividem na tentativa de explicar a movimentação do rock a partir de 1966, principalmente nos EUA. Absorvidas as influências da invasão britânica, grupos norte-americanos passaram a fazer o som do chamado “verão do amor”, emblematizado pelo festival de Monterrey. A grande dúvida é se responder – o rock psicodélico existiu enquanto sub-gênero ou foi apenas um arranjo estilístico que incorporou abertamente a cultura do LSD? Se observarmos do ponto de vista musical, a segunda opção ganha muita força. E justamente observar o quê as bandas, que capitanearam esta parte da história do rock, fizeram após a virada os anos 70 nos ajuda a ouvir isto com mais clareza.
Pra contar e exemplificar esta história, devemos colocar na agulha discos que merecem ser redescobertos, e criticados sob uma nova óptica, ainda que não representem o auge criativo dos grupos citados. O rock psicodélico foi uma leitura lisérgica do rock dos Beatles e uma carona na fase elétrica de Bob Dylan, somado a toda bagagem (em diferentes doses) da música americana – country, soul, blues e swing-jazz – arranjada com a aparelhagem moderninha da época (leia-se guitarras fuzz, pedais de tremolo e órgãos Farfisa) e algum ingrediente étnico. Além de todo o aparato visual – roupas coloridas, projeções estroboscópicas, artes gráficas de cartazes e capas de discos como uma espécie de barroco ácido.
Ouvindo atentamente discos menos celebrados de grupos como Jefferson Airplane, Quicksilver Messenger Service, Big Brother and Holding Company, Grateful Dead, Love, Moby Grape, Steppenwolf, The Doors, Iron Butterfly, The Byrds, etc, lançados de 1970 em diante, isto fica claro. As bases sobre as quais a música destas bandas se desenvolve mudou pouco. Nota-se a ausência dos elementos mais “externos” do período 67-69. As técnicas de gravação evoluíram, resultando em sons mais aprimorados e fortes. Os instrumentos, efeitos de guitarra e amplificadores ficaram mais elaborados e poderosos, dando maiores possibilidades. Uma maior maturidade musical foi atingida pela maioria dos grupos, antes formados por pós-adolescentes que queriam transmitir toda catarse e rave-up possível para sua música. E todo um paradigma musical do período favoreceu enormemente o desenvolvimento do lado instrumental da música. Longos trechos instrumentais viraram commodity. Sonoridades fuzz e Farfisa e o uso maciço de guitarras semi-acústicas foram sendo varridos do panorama. Contudo, substancialmente, a base musical foi mantida. E foi o que deu origem ao que hoje alguns chamam como “american rock”, ou os mais taxônomicos chamam de “west coast rock”.
O que alguns, como eu, podem enxergar como evolução, outros ouvidos mais apegados podem ouvir com desprezo. Mas é fato que mudanças aconteceram. A estreia do Moby Grape, em 1967, por exemplo, tem apenas duas canções com mais de 3 minutos de duração. Em 1967, a abertura se dá com o energético boogie “Hey Grandma“. Já em 1971, o disco 20 Granite Creek abre com a swingada e pesada “Gypsy Weeding“, com um vocal bem poderoso que em nada lembra a adolescência deixada em 1967. Contudo “Goin’ Down to Texas” e “I’m the Kind of Man That Baby” tem a mesma influência country e blues que ouvimos na estreia, apesar delas não soarem da mesma forma. Será que foram só os cabelos que ficaram maiores?
Para o Jefferson Airplane, o som ficou menos quadril e mais cabeça. Qual paralelo podemos estabelecer entre “Somebody to Love” com alguma faixa do disco Long John Silver? São 5 anos de distância e alguns quilômetros de evolução musical. Mas “Feel So Good“, do disco Bark, de 1970, não poderia ser um seguimento mais amplificado, a moda dos anos 70, a “Plastic Fantastic Lover“? Alguns podem afirmar, com razão, que o senso de humor se dissipou. O Hot Tuna (grupo formado nos anos 70 por dois ex-membros do Jefferson Airplane) cristalizou em sons toda a influência blues-country que ficava escondida por trás das guitarras ardidas do Jefferson Airplane.
A força melódica de “Hope“, do disco Quicksilver, de 1971, do Quicksilver Messenger Service em nada lembra os dois primeiros discos do grupo. Porém, como não associar a estrutura de “The Truth“, deste mesmo disco com “Pride of Man“, do disco de estreia, de 68? ou ainda com “Fresh Air” do disco Just for Love, de 70? A diferença básica para estas é sua duração e a quantia de solos de guitara.
Até nome do disco pode ser irônico em se tratando do grupo Love. Talvez pudéssemos dizer que ali se trata de um “falso início” para um disco do grupo com a lisérgica e distorcida “The Everlasting First” comparado com um grupo que abusou tanto de violões acústicos e de passagens orquestrais no mítico Forever Changes. Mas ali temos um outro ingrediente chamado “Jimi Hendrix” fazendo toda a diferença. De fato, o Love quis buscar outros territórios para vestir seu folk-rock, mas sem perder a verve melódica que tanto os caracterizou. O vocalista e guitarrista Arthur Lee, em seu disco solo de 1972, Vindicator, apropriou-se do heavy rock.
Em se tratando do território de mudanças mais bruscas de som e sonoridade, poderíamos dar o exemplo do Big Brother and the Holding Company. Para uma banda que ficou na sombra de um talento como o de Janis Joplin, e que causou muita dor de cabeça aos produtores para editarem os trechos ao vivo em Cheap Trills (tamanha a quantia de bolas na trave durante a gravação), chega a ser impressionante ouvir discos como Be a Brother e How Hard it Is, lançados entre 1970 e 1971, já sem Janis. Musicalmente mais ecléticos e fluentes, se aventuraram bem em faixas mais elaboradas, como “Nu Bugaloo Jam“, “Funkie Jim” e “How Hard it is”, admitindo que o funk e o soul lhes fazia muito a cabeça. Os vocais divididos em refrões ganchudos continuavam ali, sendo uma marca registrada do grupo. Mas a maturidade musical chegava pra toda essa turma, que não teve medo em seguir adiante.
1967. O Grateful Dead ia longe nas improvisações de “Viola Lee Blues“, dando voltas em torno de si próprio, com o vocabulário de frases que lhes era disponível. Em 1969, coisas como os 23 minutos de “Dark Star“, mostravam o quanto aquelas ácidas jam sessions eram didáticas em termos de instrumentação. Contando com a talentosa dupla de guitarristas Bob Weird e Jerry Garcia, em 1975, pintavam coisas dissonantes e tortuosas como “King Solomon’s Marble“, com sua puxada latina e free jazz. Sem contar, o mergulho fundo que a banda deu nas águas batismais do country-rock emAmerican Beauty, de 1971.
Outros que avançaram muito na musicalidade foram os Byrds. E com talvez o caso que melhor explique todo esse texto. Ouça e compare “Eight Miles High” em 1966 e a mesma “Eight Miles High” em 1970, ao vivo. Sim, o country-rock e a influência dylanesca continuaram lá intactas para os Byrds, mesmo com as mudanças de formação, mas novas influências e possibilidades foram assimiladas no cardápio. Triste ver discos como Byrdmaniax esquecido pelos fãs do grupo. Ok, não era mais a novidade. Mas quem gosta de arroz a piamontese geralmente não deixa de gostar de arroz.
O Iron Butterfly em 1968 já era um grupo com muito conteúdo musical e boas passagens instrumentais. Ainda que seu som soe hoje bastante datado pelo uso maciço dos órgãos Farfisa, Vox e Lowry pelo tecladista e vocalista Doug Ingle, sons como “Possession” e “Fields of Sun” poderiam estar alguns anos avante da concorrência. Estas diferenças foram se ampliando, com a banda experimentando mais o soul, o blues e o rock pesado a partir de 1970. Músicas como “Stone Believer” tem muitas variações e uma balada “Slower than Guns” lembra até os momentos acústicos do que viria a ser o Genesis, de Peter Gabriel. Ainda que um lançamento muito irregular como Sun and Steel, em 1975, possa nos trazer momentos bons e enérgicos como “Lightnin“, que em nada lembra o passado, tanto em termos de musicalidade como de sonoridade.
O Steppenwolf foi um grupo que pouco mudou. Para a felicidade daqueles que se encantam com sua estreia em 1968, na virada da década ainda tinhamos discos como Seven e For Ladies Only, queimando aquela mesma lenha. O único porém é que não se consegue vender a mesma coisa para o mesmo cliente muitas vezes. Mas coisas como “Earschplittenloudenboomer” tem uma ousadia e uma safadeza típica dos anos 70 que não se encontra nos lançamentos anteriores.
Falamos só de EUA até então. Na Inglaterra, a história é bem outra. Das bandas que fizeram a transição, as mudanças foram mais radicais e um novo padrão e forma de se fazer música surgiram, dando origem ao rock progressivo. Obviamente, muita bagagem foi importada dos EUA e isso daria um outro texto inteiro. Mas para exemplificar apenas, encerro a discussão toda com o Traffic em 1967, nos apresentando “Coloured Rain” e em 1974, nos apresentando “Graveyard People“.
O fato é que ainda que as bandas do rock psicodélico não tenham carregado a novidade o tempo todo, continuaram fazendo um trabalho digno de nota mas menos carregado na lisergia, ao passo que incrementaram seu som com novas influências ou apenas as deixaram transparecer com um aparato menos intenso. Novos tempos pediam novos sons e quase ninguém deixou o barco passar, ainda que nem sempre as escolhas resultaram em acertos, tanto do ponto de vista artístico quanto do ponto de vista comercial.
Bem diferente do que vemos nos nossos tempos atuais, em que o mesmo rockzinho indie mainstream perdura por mais de 20 anos, sem apresentar um pingo de evolução musical. E o mesmo pop eletrônico continua sendo uma picaretagem de mal gosto de produtores atrás de suas mesas de som com suas dançarinas/vocalistas de aluguel.
Belo artigo, comparando a produção de bandas importantes para a psicodelia que continuavam existindo no começo dos anos 70. O caso dos Byrds é emblemático, porque já em 1968 eles abraçaram o country-rock em “Sweetheart of the Rodeo”, que pode ser visto tanto como uma obra-prima quanto como um pé no saco, dependendo do quanto você gosta de country music. Já o Love não tinha alternativa, afinal de contas a banda tinha mudado completamente de formação e a visão de Arthur Lee sobre a música tinha mudado junto. Fui ouvir os discos do Big Brother and the Holding Co., que há trocentos anos não ouvia e, de fato, a evolução musical dos rapazes é impressionante.
Queria destacar o caso bem conhecido do Deep Purple: quando ouvi “The Book of Taliesyn” pela primeira vez, já tinha dominado todo o catálogo a partir do “In Rock” e foi meio difícil acreditar que eram mesmo Blackmore e Paice tocando… Parabéns pelo texto!!