Em fevereiro de 2012, com o blog de férias, foram publicadas apenas doze matérias, sendo a mais acessada até o final de 2012 esta, por Mairon Machado:
Os Sete Pecados do Rock Nacional – Parte III: a preguiça (Raul Seixas e Marcelo Nova – A Panela do Diabo [1989])
Por Mairon Machado
Este é talvez o disco mais representativo entre os Sete Pecados do Rock Nacional, e ao mesmo tempo, o que está levando essa alcunha com a maior injustiça. Afinal, o pecado da PREGUIÇA que está em A Panela do Diabo na verdade é o retrato fiel da depressão, agonia e falta de vontade de viver e de fazer música na qual estava o veterano Raul Seixas em 1989, contrastando com uma batalha sem precedentes de um ainda jovem Marcelo Nova tentando tirar seu ídolo Raulzito de um poço sem fundo.
Avessos ao rock nacional dos anos 80, a dupla acabou criando um disco que em nada lembra o que se fazia na época, principalmente em relação à revolução proposta por Ira! e Ultraje a Rigor nos álbuns
Psicoacústica e
Crescendo. Porém, ao mesmo tempo em que fugiam da sonoridade apresentada nas rádios e emissoras de TV,
A Panela do Diabo cometeu o pecado de ser um disco preguiçoso e insosso, que também foge dos padrões normais de um disco que conte com Raul Seixas e/ou Marcelo Nova.
Para entendermos como ambos chegaram nessa situação, é preciso voltar seis anos antes do lançamento desse vinil, fazendo uma breve retrospectiva a respeito da carreira de Raul e Marcelo a partir de 1983.
Em 1983, Marcelo Nova estava à frente de uma das mais importantes badas de rock da Bahia e do país, o Camisa de Vênus. Formado em 1980 por Marcelo (voz), Robério Santana (baixo), Karl Franz Hummel (guitarra), Eugênio Soares (guitarra), e Gustavo Adolpho Souza Mullen (bateria), logo o grupo sofreu uma modificação, com Gustavo assumindo a posição de Soares e a entrada de Aldo Pereira Machado na bateria, constituindo esse o line-up clássico do grupo.
|
Camisa de Vênus, com Marcelo Nova (ao centro) |
Depois de dois anos fazendo shows, em 1983 o grupo conseguiu um contrato com a gravadora Som Livre, lançando seu primeiro álbum ainda naquele ano. Camisa de Vênus fez sucesso graças à canção “Bete Morreu”, até hoje uma das principais do grupo, banida das rádios pela censura da época, que acabou fazendo com que a Som Livre desistisse de investir no grupo, não renovando o contrato.
Somente em 1985, o Camisa de Vênus voltaria a ser comentado, através de um contrato com a RGE, pela qual lançaram no mesmo ano Batalhões de Estranhos, destacando a clássica “Eu Não Matei Joana D’Arc”. Na sequência, o álbum Viva (1986) foi lançado, trazendo uma apresentação ao vivo em Santos no dia 8 de março, pelo selo RGE. O problema é que o LP foi lançado sem a apreciação da Censura, que ainda estava em vigor na época. Resultado: depois de atingir a marca de 40 mil cópias vendidas, Viva foi recolhido pela Polícia Federal, tendo oito de dez músicas censuradas em função de sua linguagem inapropriada.
Porém, quando retornou às lojas, o disco atingiu a marca de 180 mil cópias comercializadas, sendo até hoje o segundo disco ao vivo mais vendido no rock nacional, perdendo apenas para Rádio Pirata Ao Vivo, do RPM.
A perseguição da censura acabou afetando a visão de grupo que Marcelo Nova tinha. Mesmo com o próximo álbum do Camisa de Vênus, o ótimo Correndo o Risco, lançado ainda em 1986 pela Warner, vendendo 300 mil cópias carregado pelos sucessos “Só o Fim” e “Deus Me Dê Grana”, o clima já não era nada bom.
Em outubro de 1987,
Duplo Sentido tornou-se o primeiro disco duplo da história do rock nacional, mas vendeu bem menos do que o esperado: apenas 40 mil cópias. É nele que aparece a primeira colaboração entre Marcelo Nova e Raul Seixas, o maravilhoso rock “
Muita Estrela, Pouca Constelação”.
Nos idos de 1983, Raul Seixas havia se tornado um símbolo do rock nacional. Sozinho, havia conquistado uma legião de fãs na década de 70, pregando a Sociedade Alternativa, a liberdade de expressão e vendendo milhares de cópias de álbuns como Gita (1974), Novo Aeon (1975) e O Dia em que a Terra Parou (1977). Com inúmeros sucessos registrados até então, destacando “Gita”, “Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás”, “Maluco Beleza” e “Sociedade Alternativa”, entre outros, Raul passou por uma fase turbulenta no final dos anos 70, mas entrou os 80 com tudo, carregado pelo sucesso de “Rock das Aranhas” (registrada no LP Abre-te Sésamo, de 1980)
|
Raul como Carimbador Maluco |
Só que, mesmo com todo o sucesso obtido, Raul sofria com dois problemas pessoais: o constante relacionamento com drogas e álcool, e as brigas pessoais com suas companheiras.
Foi exatamente seu vício pelo álcool que o afastou temporariamente dos palcos e dos estúdios entre 1980 e 1983, quando a Rede Globo convidou-o para participar da gravação do especial “Plunct-Plact-Zum!”, a fim de que interpretasse o papel de Carimbador Maluco. Raul topou, e além de participar do programa, conseguiu um contrato com a gravadora Eldorado, lançando no mesmo ano
Raul Seixas, que acabou tornando-se seu segundo disco de ouro (o primeiro havia sido
Gita) graças ao sucesso da canção “
Carimbador Maluco“, uma crítica direta à censura, mas que poucos entenderam, fazendo com quem a imagem do rebelde Raul Seixas se tornasse então a de um vendido para o
monstro-Sist (como Raul chamava o sistema comercial do Brasil).
Porém, no ano seguinte, sofreu suas primeiras crises sérias por causa da bebida. Primeiramente, o cantor foi operado do pâncreas após uma crise de pancreatite. Na ocasião, os médicos recomendaram que Raul se afastasse completamente do álcool, mas isso não durou um mês. Passando por um momento de dificuldades pessoais, em que a Eldorado não havia renovado seu contrato, e indo buscar na Som Livre um abrigo para seu novo disco, Raul não estava nada bem.
Em uma noite, após voltar de um show, encontrou sua esposa Ângela “Kika” Seixas fazendo uma festa com amigos em sua casa. Irritado e com ciúmes, o Maluco Beleza discutiu com Kika e com os convidados, levando então à separação do casal. Com a separação, acabou entrando em uma profunda depressão, buscando a solução no álcool. Como decorrência, Raulzito foi internado em um hospital um mês após sua separação, com sintomas graves de depressão e vício em drogas. o músico acabou sendo internado no Instituto Aché, onde começou um tratamento de desintoxicação e finalmente conseguiu se livrar das drogas, mas não do álcool.
Nesse meio tempo chegou às lojas Metrô Linha 743, um álbum que expressa toda a depressão pela qual passava o artista, trazendo regravações para “Trem das Sete” e “Eu Sou Egoísta”, tendo como característica marcante a praticamente ausência de instrumentos elétricos. A censura bateu em “Mamãe Eu Não Queria” e o disco não chegou perto do sucesso que foi seu antecessor.
Após sair do hospital, começou a longa jornada depressiva de Raul. Ele parou de produzir, fazia menos shows e ficou sem gravadora. A depressão aumentou, assim como o consumo de bebidas. Desesperado e vendo seu maior ídolo à beira da morte, o presidente do fã-clube oficial de Raul, Sylvio Passos, surgiu com a ideia de lançar um LP totalmente independente, trazendo raridades da obra de Raul.
|
Sylvio Passos e Raul Seixas |
Raul gostou da ideia, exigindo apenas a inclusão de uma canção: “Canto Para Minha Morte”. Era um indício do fim. Segundo Sylvio: “naquela época ele já não tava nada bem; a música preferida dele sempre foi ‘Loteria da Babilônia’, sempre que pediam para escolher uma música, sempre pedia ‘Loteria da Babilônia’. Mas ele pediu ‘Canto Para Minha Morte’. A partir daí, ele sempre falava ‘eu tenho vontade de morrer, não tem mais graça nenhuma isso aqui… já acabou o tesão… acabou tudo…'”. O pedido de Raul foi aceito e acabou registrado no hoje raríssimo LP Let Me Sing My Rock and Roll, lançado em 1985, um dos mais cobiçados discos pelos colecionadores de vinil do mundo.
Raulzito perdeu o sentido da vida, ofendendo os homens, a sociedade, as gravadoras… Porém, ele precisava de dinheiro para comer, e assim, topava qualquer situação; principalmente onde houvesse uma apresentação, ele se candidatava. Na verdade, ele não fazia shows por dois motivos: sacanagem por parte de quem estava os organizando ou por não estar em condições de se apresentar. Às vezes, mesmo bêbado, ele comparecia aos shows, e quase sempre esquecia as letras das músicas, desagradando a todos.
Porém, depois de um período de descanso em Salvador, Raul voltou com uma nova companheira, Lena Coutinho. Com os ânimos renovados, criou um dos maiores espetáculos já apresentados na floresta amazônica, o show “Ouro de Tolo”, que foi realizado no Garimpo do Marupá (PA) entre os dias 26 e 28 de setembro. No dia 1° de dezembro realizou sua última apresentação oficial em carreira solo, no Estádio Lauro Gomes, em São Caetano do Sul (SP).
Mas os problemas voltaram à vida de Don Raulzito. Um show na casa Adrenalina que havia sido marcado para o final de 1985, em São Bernardo do Campo (SP), causou polêmica. A abertura ficou a cargo do Paralamas do Sucesso, e Raul seria a grande atração da noite. Porém, completamente embriagado, Raul acabou não aparecendo. Não deu outra: o público destruiu o local. O proprietário do Adrenalina foi até a casa de Raul, onde minutos depois, dezenas de fãs aglomeraram-se para jogar pedras na mesma. Existem rumores, nunca confirmados, de que uma pessoa morreu pisoteada na confusão.
Com o agravante de que ninguém oferecia um espaço para que Raul se apresentasse, com medo de que o efeito Adrenalina se repetisse, o cantor passou a ser visto cada vez mais como um cara problemático. Ele estava intransigente na produção de discos, e sempre estourava custo e prazo, como no caso de Metrô Linha 743, para o qual havia recebido uma verba de 80 milhões de cruzeiros para todo o trabalho do LP e um prazo de três meses, mas quando chegou na metade da gravação, já havia gasto 120 milhões, demorando mais de seis meses para entregar o trabalho.
Em 1986, o músico assinou um contrato com a gravadora Copacabana, mas com os problemas de saúde e internações constantes, as gravações foram adiadas, durando praticamente um ano. Somente em julho de 1987,
Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! foi lançado, trazendo Raul de volta ao sucesso, com a canção “Cowboy Fora da Lei” dando o terceiro disco de ouro para Raulzito. Ele acabou aparecendo esporadicamente na TV, chegando a gravar um videoclipe de “
Cowboy Fora da Lei” para a TV Globo, mas ficou por aí.
Apesar do próprio Raul definir Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! como um LP cru e roqueiro, no geral as canções chegam a decepcionar, com exceção da citada “Cowboy Fora da Lei”, que é bem diferente de todo o resto do material contido nos sulcos do vinil. Mesmo assim, não houveram shows de divulgação, e Raul ficou trancado em sua casa. Em uma entrevista para a revista Bizz, declarou: “Vou morrer tocando rock and roll”, profetizando seu futuro. Dias depois, surgiu o convite de Marcelo Nova para a gravação de “Muita Estrela, Pouca Constelação”.
|
Marcelo Nova e Raul Seixas |
O primeiro contato de Marcelo com Raul ocorreu quando o primeiro ainda era um adolescente e assistiu a uma apresentação do grupo Raulzito e os Panteras. Segundo Marcelo, foi a partir desse show que ele decidiu que seria músico. Anos depois, durante uma apresentação do Camisa de Vênus no Circo Voador (Rio de Janeiro), Raul estava na plateia e foi convidado por Marceleza para subir ao palco. No improviso, o grupo fez um medley rock ’n’ roll, tocando “Long Tall Sally”, “Be-Bop-A-Lula” e “Tutti-Fruti”. A amizade entre os dois cresceu, com Raul passando a visitar Marcelo frequentemente. No álbum
Correndo o Risco, o Camisa de Vênus regravou um dos maiores clássicos de Raul, “
Ouro de Tolo”, chegando então em “Muita Estrela, Pouca Constelação”.
Enquanto a carreira de Raul estava quase estagnada, Marcelo já pensava em desistir do Camisa de Vênus, e foi o que ele fez. As brigas acabaram causando o desmanche após Duplo Sentido, com Marcelo seguindo carreira solo, lançando, com um novo grupo, o Envergadura Moral, o álbum Liberou Geral, em 1988, mesmo ano que Raul lançou A Pedra do Gênesis. Fraco musicalmente, o disco foi um fiasco em vendas. Raul parece um zumbi de seu passado, cantando sem a mínima vontade e com pouca inspiração. Raros são os momentos dignos de sua carreira nesse vinil.
Vendo a situação de seu ídolo e amigo, Marcelo tentou ressuscitar a carreira de Raul, buscando-o do esquecimento para os palcos, depois de três anos afastado. “O lance com o Marcelo foi de última hora mesmo, a gente estava jantando e ele me convidou para o show, que era no dia seguinte”, disse Raul para um jornal local. No dia 18 de setembro de 1988, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, Raul voltava a dar seus passos diante de uma plateia embasbacada com a situação. Segundo o repórter da revista Bizz, Hagamenon Brito:
“Diante do menor público para um show de rock este ano [1988]… Raul jogou ‘Maluco Beleza’ e mexeu com o coração da galera. Mostrando-se feliz por voltar a Salvador, Raul passou a dividir os vocais com Marcelo na antológica ‘Rock das Aranhas’ e na apoteótica ‘Sociedade Alternativa’, quando Raul leu as ‘leis’ da Sociedade … Foram apenas três músicas em pouco mais de 15 minutos no palco, mas que valeram por todo o show.”
|
Marceleza e Raulzito, ao vivo |
“Foi incrível, aquilo veio abaixo”, disse um emocionado Raul após o show. Apesar de estar havia um ano ausente das rádios, da TV e, principalmente, vindo de um longo hiato dos palcos, o culto a Raul Seixas ainda sobrevivia, envolto pela ascensão e queda do rock nacional que foi apresentada na primeira edição dessa série, atravessando com cabeça erguida a onda brega/sertanejo/lambada que assolava o país. Mesmo assim, Raul não ganhava ânimo, nem com sua carreira e nem com o que ouvia: “Os conjuntos que estão aí não fazem a minha cabeça, as letras são muito fracas. Houve uma regressão muito grande na MPB, só agora está melhorando.” Era Raul cada vez mais afundado na depressão.
Para piorar, em outubro separou-se de Lena Coutinho, indo morar em um pequeno apartamento no Edifício Aliança, centro de São Paulo. Marcelo Nova surgiu novamente, colocando Raul ao seu lado para uma maratona de 50 shows pelo país, além de apresentações esporádicas nas rádios e TVs. Raul apareceu com uma imagem claramente inchada, gordo, sempre envolto em uma jaqueta que tentava esconder sua forma, assim como os óculos escuros, demonstrando cansaço e ficando praticamente estático no palco.
|
Raul Seixas no fim de sua vida: uma figura calada e depressiva |
Diabético, com uma pancreatite crônica em função do alcoolismo e sem esposa, a figura sarcástica, irônica e zombeteira que por anos marcou suas aparições e músicas deu lugar a uma figura calada, depressiva e amargurada. A doença falava mais alto, e ele não tinha mais resistência física para tudo o que estava fazendo. Não importava que o show da dupla estivesse mais para um show do Marcelo Nova com participação (ou canjas) do debilitado mas ainda disposto Raul Seixas, era difícil continuar. Mas, em um último esforço, eis que surgiu A Panela do Diabo, que não por acaso foi lançado pela gravadora WEA, a mesma de Psicoacústica e Crescendo, primeiros álbuns a ilustrarem essa série de artigos.
A ideia deste LP partiu de André Midani, presidente da WEA. “O disco foi uma consequência natural da turnê. Inconscientemente, já estávamos preparando o material para o disco. Na medida em que a turnê começou a crescer, começamos a compor. Havia ainda a coincidência de o contrato de Raul com a Copacabana ter terminado mais ou menos na mesma época. Quando veio o convite do Midani, a gente aceitou, por que era isso mesmo que íamos acabar fazendo mais cedo ou mais tarde. Bom, daí a gente se trancou em casa e produziu a maioria das músicas.” (entrevista de Marcelo Nova à revista Bizz, dezembro de 1989).
O álbum começou a ser gravado em março de 1989, entre as apresentações da dupla, sendo lançado no dia 19 de agosto do mesmo ano, uma semana após o último show dos dois, realizado em Brasília. O título do LP veio justamente dos shows, mais especificamente um no interior de São Paulo, quando alguém de uma determinada igreja distribuiu panfletos alertando aos jovens o perigo de assistir ao show da dupla, dizendo que ambos eram as encarnações do demônio. “Pois é, e eu olhei para o Raul e disse: bicho, tai o nome do disco. Agora, mais do que nunca, vai se chamar A Panela do Diabo. São eles que querem” – finalizou Marcelo Nova em uma entrevista a Jô Soares, realizada em 1989.
|
Encarte com as letras do Lado A de A Panela do Diabo |
Em
A Panela do Diabo, a dupla é acompanhada pela Envergadura Moral, tendo Johnny Chaves (teclados), Carlos Alberto Calazans (baixo), Franklin Paolilo (bateria) e Gustavo Mullem (guitarra), além de André Cristóvão (guitarra), Ricky Ferreira (pedal steel), Paulo Calazans (violão), Luiz Bueno de Carvalho (violão), Kris, Maria Eugênia e Fátima (vocais). Tudo começa com a versão a capella de “Be Bop a Lula”, em uma curta vinheta de 30 segundos que nos apresenta uma motivação para o rock ’n’ roll, seguida por “
Rock ‘n’ Roll”, um boogiezão animado, que começa com o riff de guitarra trazendo piano, baixo, bateria e a voz de Raul, cantando despojadamente sobre seu passado e lembrando os anos 70. O refrão entoa o nome da canção com muitas vocalizações. Marcelo Nova canta a segunda parte da letra, lembrando dos tempos em que não podia aparecer na TV em função do nome de sua banda (Camisa de Vênus) e dos momentos com as mulheres nos camarins. Mais uma repetição do refrão e chegamos ao breve solo de Gustavo, para que Raul continue a letra, defendendo o rock ’n’ roll, seguido por Marcelo Nova citando que Chuck Berry é melhor que Beethoven, e ambos cantam o refrão de “Roll Over Beethoven”, de Chuck, para que os dois encerrem a letra dessa boa e animada canção, que motiva o ouvinte, com Raul gritando
“dá-lhe Marceleza” no momento que Marcelo Nova afirma que irá com o rock até sua morte. A música encerra-se com um curto solo de piano, e com Raul falando
“Aqui é Raulzito baby, this is r ’n’ r, this is the real one”.
Apesar da agitação inicial, o disco cai em morosidade com “
Carpinteiro do Universo”, na qual o piano traz o riff melódico de uma guitarra tímida, envolta pelo pedal steel, com Marcelo e Raul cantando com algumas desafinações. O lento acompanhamento para a voz de Raul demonstra ao ouvinte a dificuldade que o vocalista tinha em cantar. Marcelo segue a linha melódica da voz de Raul, mas é claro que, por mais que se esforce, o cantor não estava nada bem. A balada lembra alguns momentos de sua carreira, principalmente pós
Raul Seixas, como “Coisas do Coração”, “Mamãe Eu Não Queria” (principalmente), “Gente” e “Cavalos Calados”, cada uma gravada em um dos quatro últimos álbuns de Raulzito, com uma melodia que por vezes lembra a clássica “Medo da Chuva” (
Gita), contando ainda com um interessante solo de pedal steel, mas acaba soando insossa principalmente pela sua duração e pela dificuldade em conseguirmos assimilar sua voz.
Depois de algumas audições a canção acaba agradando, mas logo na primeira escutada é difícil entender sua morosidade. Hoje em dia gosto bastante dessa música, mas confesso que no início, pulava a agulha do vinil, e não para a canção seguinte, pois “Quando Eu Morri” também é outra faixa preguiçosa, que em nada lembra os momentos roqueiros do passado da dupla. Hammond e violão acompanham o tema do baixo fretless, trazendo a voz de Marcelo Nova, que em seu momento solo canta uma canção levada apenas pelo violão, com o fretless repetindo infinitamente o seu tema e com intervenções do hammond. Ela é bonita, mas para uma música de um quase punk como Marcelo Nova, não soa bem sua lentidão e falta de agito.
“Banquete de Lixo” é a canção para qual eu movimentava a agulha do vinil. Essa é uma faixa solo de Raul, que apesar de ser tão preguiçosa e lenta quanto “Carpinteiro do Universo” e trazer Raul cantando pior do que nunca, roucamente e com um refrão tenebroso interpretado em dupla, possui uma letra muito interessante, que é uma autobiografia da carreira do músico, revisitando vários momentos de sua vida, como quando foi levado para o hospital pela primeira vez, as mulheres com quem viveu e os shows na Floresta Amazônica, como que uma despedida para os fãs, e que em alguns momentos emociona principalmente tendo em vista que esse é o último registro de Raul. É o encerramento do lado A, que começou muito bem, mas que caiu, a partir da terceira faixa, em uma preguiçosa (e difícil) tentativa de levantar um moribundo, no caso Raulzito, que Marcelo Nova acabou acompanhando com fidelidade no estágio final de sua vida.
|
Encarte com as letras do lado B de A Panela do Diabo |
O Lado B retoma o rock alegre através de “
Pastor João e a Igreja Invisível”, com o piano puxando o ritmo da canção, trazendo baixo, guitarra e bateria, com vocalizações de Marcelo. A dupla divide as estrofes dessa que é certamente a melhor canção do álbum, agora sim fazendo valer o passado dos dois, principalmente de Raul Seixas. O solo de hammond feito por Johnny é o grande momento do vinil, e claro, a levada “pra cima” da faixa alivia um pouco a sonolência das canções do lado A.
Só que “Século XXI” nos manda novamente pro sono. O piano, acompanhado pelo baixo fretless e o hammond, trazem a voz de Raul acompanhada por uma leve cadência de piano, violão e bateria. Marcelo canta a segunda estrofe e não há como se animar. Apesar da bonita letra, é quando chegamos ao refrão que temos vontade de sair correndo. Raul e Marcelo cantam juntos, mas soam desiguais. Seixas tenta cantar com uma voz mais aguda, mas desafinada demais, e somente o breve solo de violão da canção traz aquela sensação de “ufa!” para os ouvidos.
Raul vive mais um momento solo, resgatando do seu projeto inacabado Opus 666 (um disco gravado em inglês e que nunca ganhou forma) a canção “Nuit”, a mais “pesada” do LP, dando mais um ânimo ao ouvinte. Raul começa cantando, lembrando a fase entre O Dia Em que A Terra Parou (1977) e Por Quem os Sinos Dobram (1979), apesar das inevitáveis desafinadas. Boa música, apenas isso.
“
Best Seller” mantém o nível alegre. Outro rock dançante que, excluindo a mescla de vozes no refrão (impossível de aturar), com Raul quase se arrastando, é uma canção que agrada bastante, além de ser legal ouvir Raul revivendo os momentos de voz fina gravados em “Cowboy Fora da Lei”. Elogiável também a participação do hammond, responsável pelo solo principal, e do baixo, mixado com destaque em todo o álbum.
“Você Roubou Meu Video-Cassete” volta à morosidade. Marcelo canta as primeiras estrofes, passando a bola para Raul, com ambos cantando o refrão. Não tenho muitas palavras para descrever essa faixa. Lenta, insossa, com um solo de teclado ridículo, sem-graça… Enfim, preguiçosa demais.
O LP encerra-se com “Câimbra no Pé”, na qual a pesada introdução, feita pelos sintetizadores, traz o baixão e a guitarra embalada, seguida pela voz de Marcelo, na canção mais Camisa de Vênus de A Panela do Diabo, e que é o segundo momento solo do vocalista. O solo de guitarra, com uma distorção leve, mas bem interessante, mudando depois para rasgadas notas sem distorção, colocam de lado o que foi feito na faixa anterior, dando um pouco mais de créditos para um disco que, no geral, soa muito irregular, e claro, com uma sensação de falta de vontade em fazê-lo, na verdade um retrato do momento pessoal de Raul Seixas, que Marcelo Nova decidiu respeitar fazendo sua parte.
|
Contracapa de A Panela do Diabo |
A edição original do LP traz um encarte no formato de um envelope, contendo fotos dos músicos participantes e as letras das músicas. De acordo com Marcelo Nova: “A Panela do Diabo é um disco absolutamente dentro da minha discografia. Ele é mais do que nunca um disco meu, embora ele não tenha sido só meu. É um trabalho de Marcelo Nova com alguém que muito determinou em sua carreira musical, e um trabalho do qual sou muito orgulhoso. Primeiro, pela concretização de um sonho pessoal. Segundo, por que Raul Seixas nunca gravou um disco com ninguém,certo? Eu estou falando de Raul Seixas … me sinto um privilegiado”.
Na época, a crítica foi unânime em elogiar o disco. Mas eu, particularmente, creio que os elogios se deveram a um fato inesperado. Dois dias depois do lançamento oficial de A Panela do Diabo, quando o disco chegava às lojas, em uma segunda-feira, às 5 horas da manhã, Raul Santos Seixas morria em São Paulo, vítima de uma parada cardíaca causada por sua pancreatite crônica.
O corpo foi levado para o Palácio das Convenções do Anhembi, onde uma
multidão de fãs acompanhou o velório durante toda a noite e madrugada, cantando as músicas de Raulzito, muitos vestidos como ele. No dia seguinte, Raul foi carregado até o aeroporto, debaixo de chuva (para alguns, as lágrimas de Deus pela morte do cantor) e muita confusão, sendo sepultado no Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador, diante de uma plateia enlouquecida, que gritava sem parar: “
Raul, Raul, Raul“. Ele cumpriu a profecia: morreu tocando rock.
|
Jornal comentando a morte do ídolo |
Com a morte de Raul, as vendas de A Panela do Diabo subiram sem parar, gerando o quarto disco de ouro da carreira do Maluco Beleza. Como disse antes, isso acabou influenciando as críticas. Alguns chegaram a dizer que Raul está em melhor forma do que Marcelo Nova no LP.
Ayrton Mugnaini Jr. escreveu na sua resenha do álbum para a Bizz: “Embora nos seus últimos shows, Raul se mostrasse fora de forma, o vinil prova o contrário. Na verdade, esta Panela é bem melhor do que já prometiam o primeiro LP solo de Marcelo, ou mesmo a parceria de ambos no álbum de despedida do Camisa de Vênus”. Discordo fortemente. Nenhuma das canções presentes em A Panela do Diabo chega perto do que foi “Muita Estrela, Pouca Constelação”, principalmente pela performance de Raul Seixas. Ayrton acrescentou: “Aqui ele [Raul] canta melhor do que Marcelo, embora eles acabem formando uma dupla vocal quase tão desafinada quanto os Vips”, aí sim acertando em cheio na comparação.
Não consigo gostar do disco como outras pessoas gostam. Apesar de encontrar bons momentos, penso que é um dos mais fracos da carreira de Raulzito, mas claro, muito por conta de sua saúde precária. Enfim, o que ficou para a história foi o último disco de sua carreira, cujo pecado da PREGUIÇA cometido no mesmo era apenas um sinal da morte que levaria um dos maiores ídolos do rock nacional no dia 21 de agosto de 1989.
|
Marcelo e Penelope Nova |
Esse pecado também acabou influenciando a vida de Marcelo Nova, que tocou seu barco mas nunca mais conseguiu sucesso. Seja em carreira solo, seja nas idas e vindas do Camisa de Vênus (que atualmente existe, mas sem Marcelo Nova nos vocais), restou ao roqueiro baiano a fama de ser pai da VJ Penélope, da MTV.
Quanto a Raul, o álcool que ele tanto namorou lhe custou a pancreatite crônica que lhe levou meio pâncreas, quase todos os dentes, inchaço generalizado e o infarto final. Raul morreu e seu corpo foi parar debaixo da Terra, servindo de adubo às plantas rasteiras, como havia pedido em “
Canto para Minha Morte“. Seu corpo partiu para nunca mais voltar, morrendo o homem, mas nacendo o mito.
|
Raul Seixas: o mito |
Raul Seixas foi, além de um dos grandes artistas brasileiros, uma grande personalidade. Mais de 20 anos depois de sua morte, talvez seja hoje mais conhecido e respeitado do que seus últimos anos de vida. Seu estilo é único, individual, e por isso dificilmente surgirá alguém no Brasil com capacidade e o talento para ocupar a vaga deixada por ele. Sua visão dos acontecimentos, pessoas e coisas ao seu redor, suas entrelinhas povoadas por críticas sociais, tudo isso fez e faz de Raul Seixas um ser imortal, consagrado em tudo que é festa, show, apresentação infantil, casamento ou qualquer outro evento que tenha uma banda de rock, pois sempre existirá um fã para gritar “Toca Raul”.