Em 1991, a gravadora Columbia Records lançou uma caixa com três CDs, chamadas The Bootleg Series, e apresentou aos fãs do cantor norte americano Bob Dylan uma fartura de material registrado entre 1961 e 1991, a maioria sessões de ensaios, até então inéditas oficialmente. O lançamento serviu para comemorar os 30 anos de carreira de um dos maiores gênios da canção mundial.
Sete anos depois, saiu o quarto volume da série, e talvez o mais emblemático de todos. Bob Dylan Live 1966, The “Royal Albert Hall” Concert registra um dos principais momentos da carreira de Dylan, quando ele enfrenta seu próprio público, abdicando do folk rock feito apenas com violão, voz e harmônica para ampliar os horizontes, plugando as guitarras e sendo assessorado por uma das maiores bandas da história, o grupo The Band (ainda em formação).
São dois CDs que distribuem, em pouco mais de uma hora e meia de audição, um show inesquecível, tenso e carregado de energia. Na época, Dylan, com apenas 24 anos, vinha de uma longa e polêmica excursão, na qual ele apresentava primeiramente um set acústico solo, e depois, um set elétrico acompanhado por um quinteto com órgão, guitarra, piano, baixo e bateria. Até então, ele havia caracterizado-se e consolidado-se como um dos principais nomes do folk rock, apresentando-se sozinho com violão e harmônica, declamando suas canções com letras de protesto (em maioria) e no máximo com a companhia da amiga (seria também amante) Joan Baez nos vocais e violões.
|
Ensaio para o Newport Folk Festival, com Mike Bloomfield (à esquerda, de preto) |
Mas tudo mudou a partir do Newport Folk Festival, em julho de 1965, local onde começou a turnê do álbum Bringing it All Back Home (1965) e que causou um choque na plateia e imprensa, tudo por que Dylan havia decidido ligar a guitarra em um festival folk. A ideia surgiu ao ver, no mesmo festival, o grupo Paul Butterfield Blues Band fazer o mesmo, com o excelente guitarrista Mike Bloomfield detonando em solos arrasadores, deixando a plateia, organizadores e imprensa de tranças caídas com tamanha ousadia.
Bloomfield acompanhou Dylan na empreitada em Newport, e participou de quase toda a perna americana da turnê, sendo substituído por outro gênio da música, o canadense Robbie Robertson. Junto de Robertson, vieram Levon Helm (bateria), Garth Hudson (órgão), Rick Danko (baixo) e Richard Manuel (piano). Esse time, batizado de The Hawks, formou a base do que viria a ser a The Band anos depois, e participou de boa parte da turnê europeia e australiana.
|
Dylan, assustando ao público com sua banda elétrica |
Nos shows finais, na Inglaterra e França, Levon sofreu um pequeno problema, e foi substituído por Mickey Jones. Toda a turnê foi registrada no filme Don’t Look Back, de D. A. Pennebaker. Os shows na Inglaterra foram o auge da tour, não somente por que Dylan já estava cansado, mas também por que o público inglês não estava preparado para o que aconteceu no palco, apesar da ampla divulgação que a imprensa norte-americana já havia feito de shows como o citado Newport Folk Festival e também de uma apresentação em San Francisco, em dezembro de 1965 .
No dia 17 de maio de 1966, Dylan subiu ao palco do Royal Albert Hall, em Manchester, Inglaterra, onde
Bringing it All Back Home estava na primeira posição nas paradas, e diante de mais de 2000 pessoas começou seu set acústico com “She Belongs to Me”. Dylan entra ovacionado, e atacando a plateia com três minutos de fúria ao violão e harmônica, e rasgando ainda mais sua voz esganiçada. Todo o set acústico está no disco 1, e é claro ao ouvinte que Dylan está totalmente sem vontade, principalmente ao interpretar a segunda canção da noite, “Fourth Time Around”, mas com o público o ovacionando e muito ao final de cada canção.
A partir da épica “Visions of Johanna”, o norte-americano começa a descarregar sua raiva, e essa se torna um dos principais destaques do disco 1, ao lado da primorosa versão para “Desolation Row”, além de uma inspirada interpretação para “Mr. Tambourine Man”.
|
Parte interna do CD |
Dylan deixa o palco aplaudidíssimo, e o CD 1 é concluído, levando-nos para o elétrico CD 2, o qual já começa com a plateia conversando, murmurando algo como que dizendo: “Como assim, uma banda elétrica?”. Dylan dá o toque e é Robertson quem abre o celeiro de clássicos, com o riff de “Tell Me Momma”, um verdadeiro assombro, com guitarra e órgão comandando a sacolejante levada da canção, e com Dylan muito mais a vontade no palco.
A partir de então, é pancadaria atrás de pancadaria. Dylan canta com uma gana Viking, e a cozinha Jones / Danko é um caso a parte, batendo com violência em cordas, pratos e caixa. Apesar da mixagem não ser das melhores (culpa principalmente da gravação ter sido feita originalmente em um “moderno” – a época – caminhão de gravação), é perceptível que os dois estão em um dos seus melhores momentos.
|
Danko, Dylan e Robertson. Eletricidade exalando por cada poro dos músicos |
Outro que está arrasando é Robertson. Sem as famosas engasgadas, o ainda menino canadense manda ver em solos rasgados, fraseados melódicos e esbanja talento em passagens muito emocionantes, como as apresentadas em “Just Like Tom Thomb Blues” e “Ballad of a Thin Man”, essa última com Dylan ao piano.
Mas, é claro, o grande destaque do show é Dylan. Indignado com as vaias e manifestações (que passam a ocorrer a partir da terceira canção, “Baby Let Me Follow You Down”), ele se destaca por apresentar aos fãs, com soberania e indiferença, algo que eles não queriam ver nem ouvir. A voz de Dylan se destaca em pérolas como “I Don’t Believe You (She Acts Like We Never Have Met)” e “One Too Many Mornings”, ou até mesmo apresentando o bluesão “Leopard-Skin Pill-Box Hat” (esse com uma irônica “tenho uma canção fresquinha para vocês”), a qual é caracterizada pela ironia, desprezo e satisfação por estar fazendo aquilo, entre diversas manifestações contrárias advindas da plateia.
Tudo isso ocorre durante uma catarse coletiva do público, que, embasbacado com a potência sonora das guitarras, órgão, bateria e baixo, mal aplaude as canções, e vez em quando faz rumores de vaias. Dylan mal fala com os fãs, e quando o faz, é sempre com ironia. O auge do show ocorre em “Like a Rolling Stone”, quando, segundos antes de começar a tocar, um fã da plateia grita para Dylan: “Judas!”, e é ovacionado pelos demais presentes. Dylan estupidamente responde da seguinte forma ao fã: “Não acredito em você! Você é um mentiroso!”, e praticamente cuspindo ao público, grita para Robertson e os The Hawks: “Let’s Fucking Loud!”, mandando uma magistral versão de oito minutos para um verdadeiro clássico do rock, encerrando o show abaixo de vaias e pouquíssimos aplausos, com o hino “God Save the Queen” sendo entoado nas caixas de som.
|
Bob Dylan, o gênio rebelde |
Pouco tempo depois, Dylan lançou Highway 61 Revisited (agosto de 1965), um de seus melhores trabalhos, e na sequência, o essencial Blonde on Blonde (1966), talvez o melhor disco de sua carreira, nos quais conseguiu harmonizar a parte elétrica com a acústica e conquistar toda uma nova geração de seguidores. Até que veio o fatídico acidente de moto em 1966, que o deixou afastado dos palcos por mais de oito anos, voltando somente em 1974 com a turnê de Planet Waves.
Mas isso já é assunto para outro lançamento da Bootleg Series.
Este Vol. 4, com certeza, se você gosta de boa música, não hesite em adquirir.
|
O material contido em The Bootleg Series Vol. 4: Bob Dylan Live 1966 |
Track list
Disco 1
1. She Belong To Me
2. Fourth Time Around
3. Visions of Johanna
4. It’s All Over Now, Baby Blue
5. Desolation Row
6. Just Like A Woman
7. Mr. Tambourine Man
Disco 2
1. Tell Me. Momma
2. I don’t Believe You (She Acts Like We Never Have Met)
3. Baby, Let Me Follow You Down
4. Just Like Tom Thumb’s Blues
5. Leopard-Skin Pill-Box Hat
6. One Too Many Mornings
7. Ballad of a Thin Man
8. Like a Rolling Stone
Sou daqueles que não gostam muito do Bob Dylan, mas o respeitam pelo seu talento e pela sua importância histórica na música.