Tralhas do Porão: Taste
Por Ronaldo Rodrigues
3 anos de atividade, 2 discos lançados, um sucesso efêmero e um fim abrupto. Eis um resumo da trajetória do Taste, banda que projetou (ao menos no Reino Unido) o guitarrista irlandês Rory Galagher. Em sua terra natal, Galagher é uma reverenciada sumidade; no restante do mundo, goza de um prestígio menos amplo do que merecia.
Em 1966, Rory Galagher era um garoto de 18 anos que já tinha alguma experiência com vários instrumentos (guitarra, baixo, banjo, mandolim, gaita, saxofone) e já tinha passado por duas bandas bastante ativas, o Fontana e o Impact. Na ocasião, ele já sentia confiança suficiente para montar sua própria banda e assim o fez. Na cidade de Cork, onde se baseou após uma temporada na Alemanha, montou um trio que foi batizado como The Taste. Pouco tempo depois, o nome foi simplificado para apenas Taste, contando dois músicos nativos de Cork – Eric Kitteringham (baixista) e Norman Damery (baterista).
O início em Cork foi difícil. Mas pouco tempo depois a banda passou a basear-se em Belfast, uma cidade maior e com mais oportunidades. Belfast era também a cidade do Them, o primeiro grupo pop/rock irlandês a se destacar internacionalmente. O Taste conseguiu uma residência no Club Rado, uma boate que ficava dentro do Maritime Hotel. Ali, noite após noite, show após show, a banda começou a ganhar um reconhecimento que já não se limitava à cidade. Em poucos meses a banda já chamava a atenção em outras freguesias, e surgiram os primeiros convites para se apresentar no badalado Marquee Club, em Londres.
A medida que a empolgação do público pelo Taste crescia, surgia no horizonte a possibilidade de gravar um álbum. O manager da banda, Eddie Kennedy, insistia com Rory Galagher para que a seção rítmica do Taste fosse substituída. A banda já mesclava com sucesso um repertório próprio com inventivas releituras de standards do blues e r&b. Nas aparições no Marquee, gente de peso como John Lennon e Eric Clapton davam declarações públicas avalizando o som e o vigor da garotada de Cork. Tudo isso pavimentou o caminho para a assinatura de um contrato com a Polydor. A pressão de Kennedy e de outros executivos acabou decretando o fim da linha para Norman Damery e Eric Kitteringham, mesmo que a contragosto de Galagher. O próprio Eddie Kennedy foi quem recrutou os músicos substitutos, a partir de uma outra banda que tinha empresariado na Irlanda. Eram eles John Wilson (bateria) e Richard McCracken (baixo). O grupo agora firmava-se definitivamente em solo londrino.
Eddie Kennedy não era o tipo de cara em que se podia confiar. Ao mesmo tempo em que prometia para a banda um contrato com liberdade criativa junto a Polydor, era ele mesmo quem estava assinando o contrato, já que os garotos eram menores de 21 anos. Ou seja – nessa configuração os músicos eram empregados de Kennedy. E, como esperado, recebiam um salário ridículo enquanto Kennedy estava livre para abocanhar as fatias maiores. Pela falta de experiência, nenhum dos garotos da banda entendia a roubada que isso representava.
Na parte musical a banda se desenvolvia ainda mais. Especialmente Rory Galagher, que tinha foco total na música. Era um garoto tímido e introspectivo; ao vivo porém, sua guitarra explodia. A companhia de uma cozinha mais experiente e potente ajudava seu desenvolvimento. Mas a despeito da escalada do grupo no aspecto musical – tocando para plateias maiores, acompanhando bandas importantes, impressionando platéias em diversos lugares da Europa – a realidade pós-show era dura para o grupo, com pouca grana disponível e dividindo um apartamento precário. A ascenção era de tal monta que o Taste foi convidado para ser a banda de abertura do lendário show de despedida do Cream no pomposo Royal Albert Hall. Foram dois shows na mesma noite, em novembro de 1968, no qual o Taste tocou seguido do Yes, com o Cream concluindo. Após um intervalo, uma nova apresentação do Yes (que também era uma banda iniciante e sem disco gravado), do Taste e do Cream, encerrando a noite. A recepção da platéia foi calorosa e muitos músicos famosos estavam naquela platéia, como Jimi Hendrix, Dave Crosby e os músicos do Traffic.
Mais algum tempo se passou e o Taste foi convidado para acompanhar o nascente supergrupo Blind Faith (de Eric Clapton, Ginger Baker e Steve Winwood) em sua incursão pelos EUA no início de 1969. Em abril daquele ano, o Taste finalmente lançava seu primeiro álbum, autointitulado. Ainda que o disco tenha vendido bem e recebido boas críticas da imprensa britânica, os garotos ainda continuavam no mesmo perrengue financeiro. Eddie Kennedy buscou rodar com a banda pelos EUA, mas a excursão não foi bem planejada e não rendeu o esperado. A Polydor, vendo a repercussão do primeiro álbum na Europa, solicitou a banda para produzir material para o segundo álbum. com um pouco mais de tempo e uma estrutura melhor de gravação, a banda gravou o álbum On the Boards, lançado na virada do ano de 1970.
A história se repetia – o disco ia bem, a banda fazia shows freqüentes e com ampla audiência, mas nada da grana aparecer para os garotos. Eles continuavam tão pobres quanto o eram no anonimato. E ainda havia um agravante – a Polydor lançou a faixa de abertura de On the Boards (“What’s Going On”) como compacto e ela rapidamente se tornou um sucesso na Alemanha. Rory Galagher ficou furioso, porque achava que sua música não era pra ser colocada neste formato. O irmão de Rory, Donal Galagher, era o roadie do grupo e uma cisão entre as partes surgia no horizonte – Wilson, McCracken e Kennedy de um lado e os irmãos Galagher de outro. O ressentimento de Wilson e McCracken também era nítido no ambiente da banda, já que os holofotes estavam quase sempre em Rory Galagher.
Contudo, o prestígio do Taste se materializava novamente no convite para a 3ª edição do Festival da Ilha de Wight, que mesmo sem querer, acabou se tornando um dos maiores festivais da história do rock. O Taste tocou em uma das tardes do festival e ocasionou uma quebra de protocolo: o filmmaker Murray Lerner tinha determinado que bandas de segundo escalão deveriam ter apenas uma ou duas músicas filmadas, para poupar rolo de filme para as apresentações dos headliners (Jimi Hendrix, The Who, The Doors, etc.). A apresentação do Taste porém, chamou grande atenção dos cinegrafistas, que gravaram a performance da banda quase na íntegra. Quem vê o desempenho formidável do Taste no palco não imagina o quanto o grupo estava em frangalhos – poucos dias antes, Galagher soube que Wilson e McCracken haviam assinado um outro contrato com Kennedy, prometendo “mundos e fundos” para os dois. O guitarrista entrou ali sabendo que sua história com o Taste tinha data para acabar.
Ao voltarem, Galagher estava decidido a por um fim em tudo, mas a Polydor já havia agendado um tour européia para o grupo. Galagher aceitou, contanto que a Polydor o pagasse diretamente, sem ser intermediado por Eddie Kennedy. A coisa não rolou como Galagher queria. Quem deu uma força foi Peter Grant, empresário do emergente Led Zeppelin. Ao ver a picaretagem a qual o Taste estava submetido, fez lobby para que a Polydor contratasse Rory Galagher como artista solo. Ainda que estivesse furioso com todos, seu jeito tímido e gentil ainda o levou a fazer um show de despedida do Taste, no reveilon de 1970 em Belfast.
Ainda que Rory Galagher partisse para uma bem sucedida carreira solo, as picaretagens não pararam por aí e lançamentos póstumos do Taste foram colocados no mercado até 1974 sem sua autorização. O ressentimento de Galagher pelo Taste o acompanhou por toda a sua vida – ainda que tivesse sido o líder e compositor de quase todas as músicas que a banda gravou, ele nunca executou nenhuma das músicas do Taste em sua carreira solo. Os dois músicos remanescentes formaram o Stud, um grupo de rock eclético que teve lá seus bons momentos no início dos anos 70. Wilson e McCracken reformaram o Taste sem Rory nos anos 2000 e até hoje tentam manter um arremedo da banda na estrada.
Rory Gallagher, na minha opinião, é um dos maiores guitarristas da história do rock. Não bastasse, era um ótimo compositor, excelente cantor e um monstro no palco. Não entendo como há gente que ainda não conheça a sua obra. E “Irish Tour ’74” é um dos melhores discos ao vivo de todos os tempos.
Tralha só no nome da seção. Na prática, uma bandaça, que simplesmente revelou Rory Gallagher, um monstro nas seis cordas!! Baita texto Ronaldo!
Obrigado pelos comentários, pessoal! foi um prazer escrever sobre essa grande banda (eu gosto muito da carreira solo do Rory, mas tenho um carinho especial pelo som do Taste). Rory é conhecido no meio roqueiro, mas ele deveria ser reverenciado tal como os guitarristas do primeiro escalão do rock!
Abraços,
Estou ouvindo as box sets comemorativas dos dois primeiros discos-solo de Rory Gallagher, o autointitulado disco de estreia e o “Deuce”, e em especial no primeiro, que traz uma entrevista de Rory e uma memória de Donál Gallagher, fica claro que o fim do Taste foi causado pela péssima gestão dos negócios da banda. Donál esclarece que Peter Grant apareceu antes de um show do Taste para “dar uma ajuda com o equipamento” – e como o mano Gallagher não conhecia o empresário, aceitou a mãozinha e ofereceu um lugar no backstage para assistir o concerto. Só aí Peter Grant se apresentou, mencionando que ele empresariava o Stone The Crows, que ia fazer a abertura.
“Sinner Boy”, do primeiro disco-solo, era uma música do Taste, mas não chegou a ser gravada em estúdio com eles, pois a banda acabou antes. O disco ao vivo com o show na Ilha de Wight traz uma versão – e comparando-a com a versão ao vivo para o Sunday Concert de John Peel, presente na box set, a gente vê como Wilson e McCracken comem poeira em comparação com Gerry McAvoy e Wilgar Campbell (este, um baterista simplesmente sensacional, pena que ficou tempo com Rory). O Taste vai ser sempre a banda que poderia ter sido a sucessora do Cream ou do Experience, mas ficou no meio do caminho – e honestamente ainda bem que isso aconteceu, pois Rory Gallagher lançou uma impressionante série de discos-solo praticamente sem falhas.