Tralhas do Porão – Master’s Apprentices
Por Ronaldo Rodrigues
A Austrália teve uma prolífica cena de rock e pop nos anos 60 e 70. É fato que muito poucas bandas conseguiram projeção internacional, mas o mercado interno era forte o suficiente para que as bandas obtivessem um sucesso consistente. No início dos anos 60, jovens de Adelaide (uma das maiores cidades australianas) já se ligavam no rock feito por grupos como Ventures e Shadows, bem como no som de Elvis Presley, Chuck Berry, Bo Diddley, entre outros. Como a cultura do surf também já era forte na Austrália naquela época, o Mustangs era um dos conjuntos que remavam a onda do surf-rock instrumental, um estilo muito em voga no período pré-Beatles. O grupo era capitaneado pelo guitarrista Mick Bower.
Porém, em junho de 1964, os Beatles vieram para Adelaide e uma verdadeira catarse aconteceu por lá – estima-se que quase metade da cidade (que tinha cerca de 600.000 habitantes) tenha tentado acompanhar o desembarque do Fab Four no aeroporto local! Isso foi o catalisador para que o Mustangs desse uma guinada em seu direcionamento musical, visando aproveitar o rastro da Beatlemania que tinha varrido a cidade. O primeiro passo do Mustangs foi arrumar um vocalista e foi aí que Mick Bower conheceu um dos protagonistas dessa história – o vocalista Jim Keays, um imigrante escocês. A reformulação do Mustangs foi completa e incluiu uma mudança no nome da banda, adotando o nome de Masters Apprentices (com a omissão voluntária do apóstrofo no Master’s). A primeira formação do Masters Apprentices incluía além de Mick Bower e Jim Keays, o baixista Gavin Webb, o baterista Brian Vaughton e o segundo guitarrista Rick Morrison. O nome foi sugerido por Bower, que se considerava discípulos de mestres do blues, como Elmore James, Jimmy Reed, Robert Johnson, Chuck Berry, entre outros. Com pouco tempo de estrada com essa formação, o quinteto já era bastante popular em Adelaide e arredores. Em 1966, o Masters Apprentices já tinha aparecido em rede nacional e tinha um contrato para gravar seu primeiro compacto, com as faixas “Undecided” e “Wars of Hands of Time”, compostas e gravadas muito rapidamente, como era praxe na época. A distorção da guitarra de “Undecided” foi obtida acidentalmente e deu uma apimentada na agitada faixa, que abriu a discografia do grupo. Logo as duas faixas estavam em todos os alto-falantes descolados de Melbourne, onde a cena pop/rock australiana fervilhava.
A repercussão em Melbourne crescia tanto que moveu a base da banda para lá a partir de 1967, ano em que foram lançados seus próximos compactos – “Buried and Dead/She’s My Girl” e Living in a Child’s Dream/Tired of Just Wandering”. A banda produziu com orçamento próprio o que é considerado o primeiro vídeo-clipe do pop australiano para “Buried and Dead” (veja aqui). Alguns meses depois desses compactos, o selo local Astor tratou de lançar o primeiro álbum do grupo, auto-intitulado, contendo os compactos e mais algumas versões de Bo Diddley e Beatles no repertório. A reputação do grupo crescia tanto para o lado musical (incluindo respeito na crítica e na mídia) quanto para o lado das celebridades adolescentes. Contudo, o ritmo insano que o sucesso ia impondo aos membros fez com que o guitarrista Rick Morrison tivesse uma grave lesão pulmonar após um show. Ele foi induzido a sair do grupo e foi logo substituído por Tony Summers. A próxima vítima do rolo compressor do sucesso foi o guitarrista Mick Bower, que sofreu um colapso nervoso após ser forçado a entrar no palco em um show. O trauma causado foi tanto que Bower só voltou aos palcos mais de 10 anos após o ocorrido.
A baixa de Bower foi péssima para o grupo, já que ele era o fundador e principal compositor da banda. Os outros músicos pareciam ver que tudo estava acabado, ainda que Jim Keays tivesse recrutado Rick Harrison como substituto de Bower. Com essa nova formação e tentando retomar o fôlego, o grupo é escalado para uma grande apresentação à tarde no Hyde Park de Sydney, diante de 50.000 pessoas. Depois de poucas canções, uma grande briga estourou na plateia e a polícia foi acionada para dispersar a multidão, causando o encerramento prematuro do show. Na mesma noite, pasmem, a banda já estava tocando em outro show. Rick Harrison não aguentou o tranco e se mandou depois desses shows seguidos. Para seu posto, veio Peter Tillbrook. Começou um entra-e-sai no grupo, com a banda se envolvendo mais diretamente com drogas alucinógenas e causando polêmicas.
Jim Keays, já tendo todas as rédeas do grupo, reformulou o Masters Apprentices em meados de 1968. Collin Burgess era o novo baterista, Glenn Wheatley assumiu o baixo e o prodigioso Doug Ford veio para a guitarra. Ford ajudou a dar uma boa oxigenada no grupo, contribuindo muito com as novas composições e na adaptação do som dos Masters Apprentices para as novas tendências. Mas ainda sim, o momento era conturbado entre a banda e seu antigo empresário, a relação com o selo estava desgastada, e as drogas passaram a fazer parte da rotina. A reputação do grupo parecia ameaçada. No fim de 1968, decidiram então que Wheatley assumiria a gerência do grupo, com a dupla Ford/Keays cuidando das composições. Entraram em 1969 bastante decididos e confiantes, retomando com facilidade a reputação de live-act de respeito, aparecendo com frequência na TV. Keays passou a adotar uma postura mais reservada, evitando a super-exposição da banda. Os esforços do grupo logo foram coroados com uma explosiva aparição no Moomba Concert, ocorrido ao ar livre em Melbourne, no qual se estima uma surpreendente plateia de 200.000 pessoas! Nessa época lançaram outro compacto de muito sucesso – “5.10 Man/How I Love You” e uma longa sequência de shows fez de 1969 o ano mais bem sucedido do grupo até então.
O próximo passo para o agora Master’s Apprentices era tentar uma incursão fora da Austrália. Isso aconteceu em 1970, com a banda tentando a sorte em Londres, epicentro do rock. Eles já estavam com um novo selo, a EMI, e o segundo disco lançado na Austrália, compilando os singles mais recentes e algum material extra. O segundo álbum já mostra a banda deixando para trás a fórmula de pop/rock adolescente, adquirindo maior audácia musical. Um dos singles do álbum, “Turn Up Your Radio”, foi um grande sucesso mas causou burburinho pela letra indecorosa e foi banido de algumas rádios. Toda a grana que a banda arrecadou no período custeou a ida dos garotos para Londres em abril, de navio. A longa viagem permitiu que a banda descansasse das tours e criasse material novo. Em Londres, buscaram se enturmar e conhecer a cena local, aproveitando o tempo livre para compor. A banda não estava com equipamento para tocar apropriadamente em Londres e, nisso, Wheatley contatou a EMI londrina para verificar a possibilidade da banda desenvolver seus trabalhos em Londres. Após algum tempo de tratativa, intermediada pelo produtor Trudy Green e a EMI australiana, a banda conseguiu ser contratada pela EMI local e ter estrutura para gravar um novo álbum, que incluía a produção de Peter Brown (que havia trabalhado parcialmente com os Beatles e com o Pink Floyd) e um agendamento no Abbey Road Studios.
A banda estava cada vez mais eclética, absorvendo influências que iam de Jimi Hendrix a Donovan. Tudo ia muito bem nas gravações e o álbum novo, batizado de Choice Cuts, trazia toda a riqueza musical da banda no período, alternando muito bem entre sons pesados e momentos tranquilos e introspectivos. Um dos singles era a simpática balada “Because I Love You”, que foi um grande sucesso na Austrália logo após o lançamento, ganhando inclusive um clipe ao sabor da época (veja aqui). Apesar dos resultados positivos no aspecto musical, a grana começou a faltar pra valer e o jeito foi voltar para a Austrália para excursionar.
A turnê nacional começou, mas a banda se sentiu pouco preparada depois de ter ficado meses distante da rotina de tocar ao vivo. Um dos primeiros shows da tour foi gravado e se transformou no poderoso registro ao vivo Nickelodeon, lançado em 1971. Ali o Master’s Apprentices pegava pesado, com um repertório puramente distorcido. Mas a turnê mostrou que a popularidade da banda já não era mais a mesma e a concorrência tinha aumentado bastante. No meio de um contexto local não tão empolgante, a banda recebeu a notícia de que a EMI inglesa estava satisfeita com as vendas de Choice Cuts. A crítica inglesa também recebeu razoavelmente bem o disco e na Austrália o disco também tinha boa vendagem. A tour, contudo, não estava tão quente quanto as anteriores feitas pela banda e a grana continuava curta, o que fez com que a banda não pudesse tirar proveito da boa reputação do disco no mercado inglês. A faixa “I’m Your Satisfier” passou a ser veiculada em estações de rádio de outros países europeus e a Melody Maker fez uma resenha elogiosa para o disco.
A pressão para voltar para Londres começou a vir da própria EMI e a banda se virou como pode para uma nova incursão inglesa (novamente indo de navio, para reduzir custos). A EMI também havia garantido a produção de um novo álbum. Mas parece que a banda perdeu um pouco o timing da história; só chegaram em Londres três meses depois do apelo da EMI. A coisa toda havia arrefecido, ainda que a gravação de um novo álbum estivesse de pé com a EMI. A banda até tentou achar um empresário em Londres, mas quase nada aconteceu. Os 4 músicos da banda estavam lá (inclusive a esposa e o filho bebê de Jim Keays também foram) sem conseguir marcar shows, ainda que estivessem sempre ensaiando e compondo. Um lampejo de esperança surgiu quando a Bronze Records fez uma oferta para contratá-los e tirá-los da EMI. Contudo, a banda preferiu usar a proposta da Bronze para barganhar um contrato mais atrativo com a EMI. A negociação não chegou a bom termo, e a banda conseguiu apenas um pequeno adiantamento com a EMI, e acabou recusando romper o contrato para assinar com a Bronze, por medo de represálias jurídicas. A decisão foi, pouco tempo depois, lamentada por todos os membros da banda.
A gravação do novo álbum foi oxigenante para a banda, já que novamente toda a portentosa estrutura do Abbey Road Studios estava a disposição das novas composições da banda. O lendário produtor George Martin inclusive ajudou a banda a gravar parte de uma das novas canções e John Lennon estava gravando o álbum Imagine na sala ao lado. O novo álbum, batizado de Toast to Panama Red, mostrava a evolução musical do quarteto, que se aventurava ainda mais nos terrenos progressivos, usando cruzamentos de guitarra elétrica e acústica com muita inteligência, mantendo sempre intacta a pegada pesada no som. Quem não estava muito contente era o baixista Glenn Wheatley. Ele fazia o possível e o impossível para a banda na questão gerencial, mas nada acontecia; para se sustentar, conseguiu um emprego em uma agência de publicidade e nisso seu interesse pela banda foi diminuindo. O trabalho lhe consumia a disposição para ensaiar com o grupo, e ele relatou posteriormente que não participou de todas as faixas do novo álbum, tendo algumas de suas bases gravadas por Doug Ford. O álbum foi novamente bem recebido pela crítica, mas dessa vez as vendas foram muito fracas. A capa do álbum, que foi lançado apenas em janeiro de 1972, era um estranho desenho de um cachorro feito pelo próprio vocalista Jim Keays, que não ajudava a atrair atenção para o material. Na Austrália, a ausência da banda fez com que o público fosse sendo entretido por outras bandas e o novo lançamento passou praticamente despercebido pelo público, apesar de sua grande qualidade.
Ainda na Inglaterra, Wheatley sugeriu aos outros membros encerrar as atividades do Master’s Apprentices. Contudo, Doug Ford e Collin Burgess discordavam e queriam seguir em frente, enquanto Jim Keays se mandou de volta para a Austrália com sua família. Essa tentativa de reformar a banda como trio contou com o irmão de Collin (Dennis Burgess) assumindo o baixo, durando apenas alguns poucos meses, com a banda se desfazendo de vez em 1972. Jim Keays tentou uma carreira solo e obteve um sucesso modesto; posteriormente, formou o Southern Cross. Glenn Wheatley seguiu nos bastidores da produção musical, tendo como um de seus grandes feitos o sucesso do grupo australiano Little River Band no mercado norte-americano no fim dos anos 70. Após vários anos, novas gerações foram descobrindo a importância da obra do Master’s Apprentices, o que garantiu alguns revivals da banda a partir dos anos 80 com sua formação clássica de quarteto, contando com um novo disco de inéditas em 1988.
Muito bacana a matéria Ronaldo, eles foram uma das primeiras bandas obscuras do Heavy Rock 70′ que conheci pesquisando com a chegada da internet em casa, isso lá pra 2001-02, o May Blitz foi outra.
Valeu Diego! fico feliz que tenha curtido. Tb os conheci no início da minha trajetória pelo “underground”, com um daqueles CDs tipo “2 em 1”. Não lembro se foi antes ou depois de ter ouvido aquela coletânea “Golden Miles – Australian Rock 68 – 74” que tem uma música deles também. Sobre o May Blitz, outra bandaça! (não sei se vc já leu o Tralhas do Porão que escrevemos sobre eles). Abraço!
Sim Ronaldo, eu li sim sobre o May Blitz e igualmente show a matéria.