A condessa sangrenta do metal
Por Fernando Bueno
Elizabeth Bathory é uma figura histórica bastante controversa. Sabemos bastante sobre sua biografia, porém os mitos e lendas que rondam sua existência chamam muito mais atenção do que os fatos puros e simples. Para situarmos o período histórico em que ela viveu farei um breve relato sobre o que é conhecido sobre ela. Nascida no Reino da Hungria em agosto de 1560, Elizabeth (Isabel ou Erzsébet, em húngaro) no seio de uma família recheada de nobres do leste europeu se tornou condessa após o casamento com o conde Ferenc Nádasdy aos onze anos de idade. Por ter condição social mais elevada que o marido, se recusou a trocar seu sobrenome. Seu pai era um barão, seu tio era príncipe da Transilvânia, sua mãe era irmã do rei da Polônia e vários outros membros da família estavam distribuídos por outras casas nobres da Europa. Um dos seus ancestrais era ninguém menos que Vlad Tepes, “O Empalador”, aquele mesmo que inspirou a criação do Conde Drácula (a própria Elizabeth teve características incorporada ao personagem). O brasão da condessa, inclusive, trazia o dragão, Dracul ou Drácula em sua forma eslava.
Diz-se que ela sofria de epilepsia causada, provavelmente, por conta da consanguinidade dos seus pais (eles eram parentes próximos). Isso trazia problemas de personalidade pois por conta dessas crises epiléticas ela vivia em constante tensão e seu comportamento era instável e incontrolável. Um dos tratamentos estabelecidos para a epilepsia na época era a ingestão de sangue de outra pessoa saudável – aí os leitores já começam a entender alguns dos motivos das lendas. Depois do casamento seu marido assumiu o controle das tropas do exército húngaro e por conta disso passava muito tempo longe das suas terras. Durante esse período era ela quem cuidava dos assuntos da família de seu marido e dos deveres do castelo. Elizabeth chegou a ficar grávida de um camponês nesse período de ausência do marido. Tinha um comportamento cruel com os trabalhadores do castelo. Os castigos corporais infligidos aos criados eram até comuns na época dentro desse contexto histórico, mas os praticados por Elizabeth quase sempre se tornavam sessões de tortura que não raramente chegavam até a morte dessas pessoas.
Após a morte de seu marido em 1604 ela se mudou para Viena, mas passava muito tempo em uma propriedade na cidade de Beckov, que hoje pertence a Eslováquia. Nesse local foram praticados seus atos mais conhecidos. A descrição de tudo o que ela fez gera uma lista enorme e é fácil conseguir pela internet e muitos dos leitores já devem conhecem pelo menos alguns deles. O fato é que isso a levou a ser julgada e condenada à prisão perpétua. As histórias contadas sobre ela foram juntadas nesse julgamento, porém a própria condução desse processo já é cheia de contradições pois era de interesse tanto do rei quanto de alguns de seus familiares que ela fosse condenada. Para aumentar ainda mais a confusão em torno dessa figura, essa história com mais detalhes foi divulgada somente cem anos depois dos acontecimentos e foi feito por um padre jesuíta que encontrou alguns documentos sobre seu julgamento. Porém esse distanciamento temporal histórico pode ter adicionado mais contradições ainda. Toda essa ambiguidade gera muita curiosidade e é um prato cheio para que histórias fossem criadas em torno de tudo o que se relacionava ao nome de Elizabeth Bathory.
Mas o que tudo isso tem a ver com a música? A própria história de vida de Elizabeth já poderia inspirar as artes, quando todos os tipos de lendas foram adicionados junto de seu nome as coisas ficaram maiores ainda. Assim a literatura, o cinema, vídeo games, peças de teatro e até brinquedos usam e abusam de todo esse arsenal de referências. E, o que nos interessa aqui, a música não poderia ficar de fora. Com relatos conflitantes sobre seus crimes e personalidade os artistas interpretem e reimaginam sua história de diferentes maneiras, criando músicas que exploram diferentes aspectos de sua vida e legado. A primeira obra musical inspirada de alguma forma por seu nome foi escrita em 1913 por Sándor Szeghö, ‘Báthory Erzsébet’, uma ópera húngara. Anos depois outra ópera composta agora pelo checo Millos Smatek. E esse tipo de música erudita costuma revisitar frequentemente essas histórias sendo que até os dias de hoje algum compositor volta a elas. Entretanto os leitores aqui estão interessados na sua relação com o rock e o metal.
Nessa linha é impossível não citar duas referências. Em seu segundo álbum, Black Metal (1982), o Venom consolidou e deu nome à um estilo musical e continha uma de suas principais faixas da carreira, “Countess Bathory”. A outra é a banda que usou o sobrenome da condessa como nome da banda, o Bathory. Eles mesmo em seu disco Under the Sign of the Black Mark trazem “Woman of Dark Desires”. Existe a discussão se a banda, fundada em 1983, foi nomeada por conta direta da história ou por conta da música do Venom. Porém tanto o Venom quanto o Bathory ficaram para a história como importantes integrantes e pioneiros da primeira onda do black metal.
Por motivos óbvios o black metal é um estilo que aproveitou muito do terreno fértil das histórias de Elizabeth para suas músicas. Tormentor com “Bathory Erzsebet” em 1989, regravada pelo Dissection em 1993. Os holandeses do The Countess em sua demo de 1995 traziam a faixa “The Wrath of Satan’s Whore”, com sonoridade muito parecida com o material produzido lá na Noruega. O Cradle of Filth em 1998 não gravou apenas uma música, mas fez um álbum todo dedicado à ela, Cruelty and the Beast, inclusive com uma capa bem representativa das principal característica das lendas que rondavam Elizabeth: o fato de que ela se banhava em sangue de jovens para manter sua beleza. Várias outras obras tem a sede de sangue da personagem a inspiração para suas músicas. Até mesmo uma banda brasileira pode ser citada nesse momento. O Malefactor, oriundo de Salvador veio com “Elizabathory” no seu ótimo álbum Anvil of Crown de 2013. A história de Elizabeth Bathory é repleta de elementos sombrios e macabros, como assassinatos, tortura e alegações de vampirismo, são temas frequentemente explorados no black metal que têm uma estética mais sombria e obscura. Mas a ligação da personagem com o sobrenatural é o mais explorado por essas bandas.
Outras vertentes do metal, como o power metal, o metal sinfônico e o doom metal, tem como um mote comum as lendas e mitos, geralmente épicos. A história de Elizabeth Bathory é envolta de muitas lendas e mitos, o que a torna ainda mais intrigante. Muitas vezes, artistas são atraídos por histórias lendárias e misteriosas, pois elas oferecem uma rica fonte de inspiração para criar músicas com narrativas cativantes. O Cloven Hoof, representante da NWOBHM em seu álbum de 2020, Age of Steel, apresenta “Bathory”. O Candlemass já sem o vocalista Messiah Marcolin, com Robert Lowe, em 2009 soltou “The Bleeding Baroness”. A curiosidade fica por conta do cover gravado para o clássico “Countess Bathory” por uma banda montada por Marcolin creditada como Ex-Candlemass para um tributo ao Venom de 1994. O Kamelot em seu álbum Karma de 2001 tem “Elizabeth”, uma obra em três partes que foca na sua busca desesperada pelo elixir da juventude. Até mesmo os gigantes do Slayer têm sua “Beauty Through Order” do álbum World Painted Blood de 2009.
Outro fator que explica o interesse por esse personagem é a estética visual e teatral que todo o entorno traz à nossa mente. A história de Elizabeth Bathory é repleta de referências com imagens de castelos sombrios, sangue e beleza eterna. Esses elementos visuais podem ser explorados na música, especialmente em gêneros como o gothic metal, que valorizam a estética e a performance teatral. Aqui podemos citar uma das principais bandas de occult rock e seu representante máximo, o Ghost, que em seu álbum de estreia de 2010, lançou a faixa que se transformou em um single muito cobiçado e valioso hoje em dia, “Elizabeth”. Os austríacos do Darkwell em seu EP de 2002 com “Elizabetha”. Na Espanha o Forever Slave com duas faixas sobre Bathory; “Resurrection” e “Schwarzer Engel”.
Em alguns aspectos a figura de Elizabeth Bathory também pode ser vista como uma representação de rebelião e transgressão contra as normas sociais e morais. Muitas vezes, a música é usada como uma forma de expressão artística que desafia as convenções e tabus, e a história de Bathory pode ser vista como um símbolo dessa busca por viver fora dos limites das regras da sociedade. O rock também foi visto dessa forma durante muito tempo, principalmente quando estava no mainstream. Assim é normal que bandas que não se encaixem nos estilos citados acima também acabem se interessando por ela. Algumas bandas de outros estilos dentro do rock que fizeram citações a ela são Siouxsie and the Banshees com uma faixa chamada “An Execution” lançada como lado B de um single. A banda feminina Burning Witches faz uma referência visual da condessa e seus hábitos em seu clipe da música título de seu último disco The Dark Tower (2023). O BoySetFire, banda mais alinhada ao Metalcore, usa o sobrenome da condessa como um sinônimo de maldade em “Bathory’s Sainthood”. Até os japoneses do X Japan dedicaram “Blue Blood” em sua homenagem.
Como citei no início do texto Elizabeth foi julgada por seus crimes e, apesar de ter tido um julgamento não ortodoxo e cheio de interferências externas, ninguém diz que ela não mereceu o seu destino. Grande parte das acusações foram tiradas sob tortura dos depoentes. Muitos até argumentam que ela foi vítima de conspiração. As guerras contra o império otomano, a luta entre o catolicismo e o protestantismo (e dentro da vertente protestante ainda tinham os calvinistas e luteranistas – ela era calvinista) e a enorme dívida que o rei tinha com ela e sua família estão no caldeirão político social que envolvem toda essa história e as controvérsias são enormes. Porém, mesmo com o grau dantesco de seus crimes ela foi sentenciada apenas à prisão perpétua e solitária. Sua cela, que ficava no castelo de Csejte, não tinha sequer portas e janelas e o único acesso era uma pequena passagem por onde lhe davam água e comida. Seus cúmplices – sim, ela tinha alguns – por não terem sangue nobre não tiveram a mesma “sorte”, pois foram todos queimados vivos. Inclusive uma dessas pessoas era Anna Darvullia, com quem Elizabeth tinha um possível caso amoroso o que acrescenta ainda mais tempero à todo esse turbilhão de informações. Ela foi encarcerada em 1611 e não é conhecido o dia exato da morte da condessa já que abriram sua cela em agosto de 1614 e ela estava morta e muitos dos pratos de comida que foram oferecidos à ela estavam intactos. Quando foi confirmada sua morte o rei Mathias proibiu que seu nome fosse mencionado e todos os documentos sobre seu julgamento foram lacrados. Cem anos depois o padre já citado acima descobriu esses papéis, a história foi divulgada e não saberemos o quanto o próprio contribuiu com o tom e intensidade das lendas que foram se criando.
O leitor que tiver mais curiosidade vai encontrar outras bandas menos conhecidas que fizeram seu “tributo” a esse personagem controverso. Ela era possivelmente a pessoa mais rica da Hungria e tinha posse de dois terços do território húngaro. Teria ela sido vítima de um massivo processo de difamação com interesses obscuros? Suas atividades podem ter sido exageradas? Ou ela realmente mutilava jovens camponesas indefesas em busca de sangue revigorante? Seria esse um caso daquele conceito de “se a lenda é mais interessante que a história, publique-se a lenda”?. Não deixe de ouvir a playlist criada especialmente para esse texto e deixe seu comentário abaixo com indicações e comentários.
Fernando, primeiramente parabéns pelo texto excepcional (como sempre lhe é peculiar). Em segundo lugar, não sabia que a condessa em questão era parente do famigerado Vlad Tepes (linhagem “de sangue” – não pude evitar o trocadilho infame). É interessante sua “provocação” no que concerne ao que seria realidade e ao que seria mito. Lembremos que o período medieval fora um momento de muita superstição e crenças absurdas, fora as perseguições e rivalidades religiosas, muito bem lembrada por você. Outra questão : geralmente a história é contada pelos vitoriosos, pois não? Independentemente de verdades ou lendas, Elizabeth marcou época a ponto de, muitos séculos depois, ainda estar inspirando pessoas na arte (e só nessa perspectiva, espero). Quanto aos discos supracitados, todos clássicos em seus estilos! Mais uma vez, parabéns pelo texto e pesquisa! Em tempo : a história e o rock n roll, para mim, são assuntos totalmente intrínsecos um ao outro! Long live to rock n roll 😎🎸
Poxa…muito obrigado pelo comentário. Quis fazer esse contraponto, pois em todo lugar que eu li tinha essa ambiguidade entre o que é realmente história e o que é mito. Por isso mesmo que não quis descrever em detalhes as práticas atribuídas à ela. Acredito que ela tenha sido mesmo uma psicopata e tenha feito mesmo muitas atrocidades, mas até onde isso foi não podemos dizer.
Bah, que legal ler um texto desses aqui na Consultoria. Me lembrou os primórdios do site. Fazia tempos que não surgia um artigo especial com esse lado historico. Parabéns Fernando, as bandas citadas não sao do meu estilo de audição, mas a leitura foi do nível exatamente do que aprecio em um texto. Valeu
Vindo de vc é um elogio e tanto Mairon!!!
Fernando como sempre produzindo textos dignos de um Mestre! Creio que seu artigo cobriu bem e de maneira honesta o que se fala da Condessa.
Apenas acrescento que o Danzig, no seu “filme” intitulado Verotika, dedicou um episódio a Condessa Húngara chamada “Drukija Contessa of Blood”. Já aviso que é bem tosco e mau feito, aliás, esse filme todo é uma merda sem tamanho rsrs.
Obrigado Marcelo…
Eu cheguei a ver isso quando estava fazendo a pesquisa, mas não quis ficar citando outros tipo de arte além da música,mas poderia ter feito já que se trata do Danzig. Obrigado pelo elogio
Bom dia.
Vou comentar nesta postagem (bem bacana, por sinal), pois não achei um “fale conosco” no site: Há 5 dias, faleceu Denny Laine, cofundador dos Wings com McCartney. Acho que vale uma bela postagem, sobretudo se vocês fizem um “discografia comentada” dele, que possui muitos (e raros) discos solo.
Abraços.
Texto bacana, mas o Under the Sign é o terceiro disco do Bathory, não o segundo. Feliz natal!