Resenha de Livro: Non Serviam, A Biografia Oficial do Rotting Christ
Por Fernando Bueno
A primeira onda de black metal com bandas como Mercyful Fate, Venom, Hellhammer, Celtic Frost e Bathory, somados aos primeiros discos com temáticas mais obscuras de Sodom, Destruction, Slayer e Kreator influenciaram uma grande quantidade de jovens que seriam responsáveis por fazer parte da segunda onda que começou ali no quase apagar das luzes dos anos 80. Essa segunda onda de black metal ficou mais relacionada com os grupos nórdicos, mais especificamente os da Noruega, mas no mundo todo tivemos levantes parecidos com maior ou menor intensidade.
Na Grécia as coisas aconteceram mais ou menos da mesma forma, porém houve uma clara liderança no movimento black metal grego, o Rotting Christ. Não tenho amplo conhecimento do black metal e não sou adepto a grande maioria das bandas, mas junto do Behemoth, o Rotting Christ faz parte das minhas preferidas. Inclusive seu disco Aealo (2010) foi o primeiro álbum do gênero da minha coleção. Você pode ler uma resenha para esse álbum clicando aqui.
Sempre tive em mente que era diferente ser satanista ou anti-cristão em um país como a Noruega em que o cristianismo não é unanimidade. Os nórdicos têm seus motivos para verem a religião com certo distanciamento, mas difícil mesmo é ser um antagonista do cristianismo em um país como a Grécia em que a religião faz parte de sua cultura desde o seu surgimento. A língua e a cultura grega desempenharam um papel significativo na formação e desenvolvimento do cristianismo. O Novo Testamento que é a base da fé cristã foi escrito primeiramente em grego, a língua foi a escolhida para transmitir os ensinamentos ao resto das pessoas, os conceitos dos famosos filósofos gregos contribuíram para moldar a teologia cristã e os primeiros estudiosos da doutrina eram fluentes em grego o que ajudou a estabelecer e ligar permanentemente a religião com a cultura grega. Tudo isso tornou a Grécia em um dos países mais conservadores e fundamentalistas religiosos do mundo. Ou seja, ir contra essa maré de dois mil anos é muito mais complicado.
Aliado a tudo isso tinha também o fato da Grécia ser muito mais pobre que os países escandinavos e o acesso ao que estava rolando no mundo chegava com bem mais dificuldades às mãos dos adolescentes do país. Sakis Tolis cita a diferença entre ser um jovem de classe média/alta e com a vida encaminhada lá na Suécia e ser um integrante da classe baixa na Grécia, com poucas perspectivas e com várias necessidades. É nesse contexto que se inicia e desenrola Non Serviam, A Biografia Oficial do Rotting Christ que foi escrito e formatado pelo principal componente da banda e pelo jornalista Dayal Patterson e recém lançado aqui no Brasil pela Estética Torta e traduzida por Marcelo Vieira. Disponível em duas versões: capa simples e capa dura com direito a autógrafo. O caldeirão musical do Rotting Christ misturou a desconfiança com a religião, com a falta de dinheiro, o envolvimento com grupos anárquicos, todo tipo de música extrema, desde o punk, o hardcore até o grind, com ocultismo, futebol e hooliganismo, tudo isso temperado com a famosa rebeldia da juventude. Num primeiro momento sendo uma banda de grindcore, por pura falta de técnica para fazer outros estilos, até se desenvolverem como músicos e aí sim fazerem o som que realmente queriam, o black metal.
O livro é escrito na forma de depoimentos transcritos, porém Dayal Patterson faz contribuições amarrando o que os entrevistados estão narrando com o contexto musical e cultural da época e também complementando os assuntos que estão sendo contados ali do momento, deixando o texto muito mais fluído, diferente de livros como Barulho Infernal em que a leitura fica truncada. Outro ponto positivo é a participação de antigos membros da banda como Jim Mutilator e Morbid, importantes figuras que ajudaram a moldar o alicerce musical que o Rotting Christ prática até os dias de hoje. Curioso também são os depoimentos sobre o jeito dos gregos de não gostarem muito de seguir regras, burlar proibições e até mesmo ser adeptos aos atrasos de horários, hábitos bastante parecidos com o que temos aqui no Brasil. Aliás, as dificuldades narradas pelos músicos para conseguir seu lugar ao sol no mundo da música também são bastante parecidas com os que os brasileiros passam, mesmo sendo um país europeu.
As dificuldades de encontrarem uma gravadora que desse o apoio necessário no início de carreira, a aquisição de um pequeno estúdio de gravação – o Storm Studio – que não só foi importante para a banda mas também para diversos outros grupos gregos, ajudando no desenvolvimento da cena são bastante abordados também. Depois do estúdio teve também a loja de discos, Metal Era, que virou point dos headbangers gregos no período. Senti falta de mais história sobre as turnês deles no Brasil. De marcante mesmo somente seu primeiro show junto do Mystifier em Salvador e uma dica sobre a água e mosquitos brasileiros.
A leitura desse livro me fez retomar a toda a discografia da banda novamente e alguns discos até cresceram para mim por conta do que li, como Dead Poem (1997) e Spleep of the Angels (1999). Além de reforçar meu maior interesse pela fase mais tardia da banda. A virada musical que a banda teve a partir de Theogonia (2007) e de certa forma dura até hoje foi algo que marcou também. Apesar de ter desagradado muita gente – os fãs mais antigos e ortodoxos – essa adoção de elementos helênicos ao som da banda ampliou muito o público.
Por ter sido lançado originalmente em 2018 o livro não cobre o período do lançamento e turnê de promoção do álbum The Heretics (2019) e muito menos os preparativos para o vindouro Pro Xristoy que será lançado ainda nas próximas semanas. Não sei se caberia um apêndice especial para esse lançamento da versão brasileira. Porém no fim das contas o livro cobre de maneira bastante satisfatória a origem e desenvolvimento da carreira dessa banda que é uma das preferidas de todos os fãs do estilo.
É incrível como a trajetória do Rotting Christ foi cheio de momentos de quase fim. Os irmãos por anos não sentiam segurança e estabilidade com a banda e até mesmo não a viam como a real atividade principal em termos profissionais. Sakis é visto por ex-integrantes como uma espécie de ditador e o fato dele praticamente não deixar ninguém participar das gravações dos álbuns ajudou muito nessa imagem. Por outro lado, a resiliência de Sakis em sempre ser o cara que não desistiu fica como uma marca do livro e a mensagem que deve ter ficado para o próprio músico foi a de nunca deixar de ler a porcaria dos contratos. Como você, que é fã da banda também não deve deixar de ler o livro.
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