Shows Inesquecíveis: The Cure (Montevidéu, 27 de Novembro de 2023)
Por Antonio Candido
Todo mundo tem uma banda favorita, às vezes até mais. A minha banda favorita é o The Cure, depois, empatados em segundo lugar vem The Smiths e Pixies. Então, prezado leitor, esteja avisado que este texto é eivado de sentimentos.
Exatos dez anos separavam meu primeiro show do Cure, em Buenos Aires, deste de 2023, o primeiro deles no Uruguai. Impossível não falar da diferença entre países. Enquanto na Argentina havia um sentimento de cuidado redobrado para não cair em algum embuste, em terras Castelhanas o sentimento era de total tranquilidade, quase como se estivéssemos em Porto Alegre, tamanha a familiaridade com Montevidéu, uma cidade calma, acolhedora e com um certo ar oitentista . Estávamos eu, minha namorada, meu sobrinho e a namorada dele. Sim, eu andei fazendo meu trabalho direito e espalhei o evangelho de Robert Smith com afinco.
Outro ponto alto foi o local do show. Arena Antel é uma aula de organização e respeito ao público. Chegamos no local por volta das 18 horas e duas imensas filas se formavam em sentidos opostos, escolhemos uma e ficamos surpresos pela escassez de ambulantes. Apenas alguns vendendo camisetas da banda e um senhor empurrando latões de Itaipava para os uruguaios incautos. As sete horas em ponto os portões se abriram e, educadamente as filas começaram a andar. Demoramos uns dez minutos para entrarmos na arena. Com capacidade para 15 mil pessoas era de se esperar que quando entrássemos boa parte da pista estivesse tomada, mas para nossa alegria conseguimos ficar muito perto do palco, na lateral ,cerca de cinco filas de pessoas de distância de onde os ingleses fariam seu debut uruguaio. Mas antes era a vez dos irlandeses do Just Mustard.
Se Cocteau Twins tivesse um filho que falasse numa língua existente seria o Just Mustard. Com um Shoegaze com bases firmemente fincadas no post punk a banda agrada a todos (pelo menos ao nosso quarteto), a voz etérea de Katie Ball lembra os anos dourados da 4AD e as intromissões de David Noonan remete aos rompantes mais histriônicos de Black Francis. Vale a pena ir atrás e ouvir o trabalho dos caras, aproveite e tome uma dose de Jameson para fazer companhia aos conterrâneos. Perto das 20:30 os irlandeses encerram seu show. Agora falta pouco para reencontrar Bob Smith e seus amigos.
Exatamente às 20:50 o som de um trovão e chuva foram ouvidos na Arena. Durante dez minutos fomos preparados para a primeira música nova desde 2008, Alone. A banda entrou no palco britanicamente as nove da noite e “Alone” é, para mim, a melhor coisa que o Cure já fez desde “Jupiter Crash”, do Wild Mood Swings. Transitando naquela atmosfera sonora criada no duo Disintegration–Wish, ela tem as introduções longas, e uma letra que parece o prenúncio de um fim que é alardeado desde o início da banda. Mas agora, o aviso parece mais sério, tranquilo, resignado. Após algumas poucas e ininteligiveis palavras de um grisalho e rotundo Robert, vamos para “Pictures Of You”. Neste ponto é difícil que alguém que estivesse lá, mesmo quem não tivesse ideia do que aquela música significava, não estivesse emocionado. Robert Smith consegue, desde sempre, passar toda a melancolia e pesar de suas músicas, independente da barreira de idiomas.
No telão, atrás da banda, Mary Poole, esposa de Roberto, como chamava um pai que acompanha a filha adolescente que atrás de nós gritava, aparecia em uma fotografia preto e branco desfocada. Após a ida até o subsolo da tristeza “High” traz leveza à plateia, seguida por “Lovesong”, canção-presente de casamento de Robert para Mary, com quem está desde seus 14 anos, “ independente da distância, eu sempre vou te amar” ele canta, e a plateia canta junto. E em algum ponto da Arena, Mary ouve a declaração. Ela acompanha a banda e sempre fica em um camarote, incognita. Isso explica os olhares perdidos do Bob para o nada enquanto vaga pelo palco. “The Last Day of Summer”, música do Bloodflowers, a melhor do álbum pra mim, segura o otimismo que já crescia nos ouvintes e nos arremete novamente ao sombrio mundo do Cure. Seguida pela turbulenta “Burn”, da trilha do clássico noventista O Corvo. Trilha essa que é um compilado do melhor do início dos anos 90. A plateia acompanha o ritmo e, como um mar revolto, cria ondas na medida que os pulos se sincronizam.
“Fascination Street” chama todos para uma dança suingada e compassada pela batida firme de Jason Cooper. E ai chegamos ao momento Head On The Door. A banda encordoa “A Night Like This”, “Push” e “In Between Days”. Em “Push” a plateia entoou o coro “ÔÔÔÔ” como ocorrera 10 anos antes em Buenos Aires, uma clara tradição platina. Com uma das introduções mais viciantes “Push” ergue a plateia e a prepara para o petardo pop “In Between Days”. Nesse momento a Arena inteira cantou junto. Uma das canções mais conhecidas do grupo, seja pela melodia, seja pelo famoso clip, não havia viva alma que não a conhecesse. Direto do Kiss Me, Kiss Me , Kiss Me temos mais uma declaração de amor do Robert para Mary Poole, “Just like Heaven”, considerada por ele a maior canção pop da banda, o quê eu discordo como veremos mais adiante.
Então entramos na sequência mais difícil do show para os não iniciados na atmosfera lúgubre de Robert Smith. “At Night”, “Play for Today” e mesmo “A Forest”, não são para todo mundo. Mas mesmo assim levam o publico a um momento mais introspectivo. Mais uma vez o coro “ÔÔÔÔ” é ouvido em “Play for Today”. Na sequência “Primary” e “Shake Dog Shake” encerram a parte menos conhecida da apresentação. Para os já iniciados, um momento de retornar aos meandros nais sinuosos da mente do líder do Cure.
Com “From The Edge of The Deep Green Sea” mergulhamos no conturbado mundo dos relacionamentos, tantas vezes expostos nas letras do Cure, e sempre tão duramente reais. É difícil explicar para os que não acompanham o grupo, e seu líder, a mais tempo, como um cara que está no mesmo relacionamento por meio século, que se mantêm apaixonado pela mesma mulher, consiga criar letras que falem de relacionamentos fracassados ou fracassando. Jason Cooper agride a bateria com ferocidade nessa que é, na minha humilde opinião, uma das mais tensas canções do grupo. Sempre terei a certeza que Boris Willians foi o melhor baterista do Cure, mas com quase 30 anos de banda Jason não precisa provar mais nada a ninguém, o cara simplesmente não para um segundo. Em contrapartida, a esta altura do campeonato já era visível que algo não estava bem com Perry Bamonte. Com um andar curto, quase robotizado, lembrando alguém medicado com Valproato, ele quase não interage com os outros membros da banda, e por vezes some do palco, como agora em “From The Edge”. Mesmo sendo um ano mais velho que Bob, a aparência é de que décadas separam os dois, com Perry parecendo mais velho. No outro extremo, substituindo Roger O’Donnel nos teclados, que não veio para a América Latina por motivos de saúde, Mike Lord é só entusiasmo. Alçado de Roadie para tecladista da melhor banda do mundo(alguém discorda? Não? Obrigado), ele não esconde a felicidade e dá conta do recado.
Encerrando o show temos “Endsong”, nome propício para a última música do setlist inicial, a outra música nova da banda. Seguindo a linha de “Alone”, mas mais puxado para o “Wish” do que Desintegration, “Endsong” nos encaminha para um fim embalado pela guitarra de Reeves Gabrels, e é mais uma boa notícia indicando o que deve ser o próximo álbum.
A banda se retira do palco e retorna para o primeiro bis com “Cold”, da obra-prima Pornography. Admito que preferia “One Hundred Years” ou “Siamese Twins”, mas com “Cold” podemos ir para o ponto mais conturbado do Cure. Robert Smith uma vez disse que na turnê deste álbum quase sempre encerrava os shows chorando, tamanho era a tensão e o clima entre os membros, mas isso ficou no passado. Ainda que se mantenha com o rosto tensionado , não ha lagrimas nem tristeza, Smith está em paz. Logo emendam outro clássico, baseada na obra homônima de Penelope Farmer, Charlotte Sometimes. Com “Plainsong” é como se uma leve brisa corresse por toda Antel Arena, a leveza da canção e a tristeza da letra, uma das minhas preferidas do Disintegration, conseguem trazer a plateia um descanso após quase duas horas de show. A faixa homonima do álbum é tocada em seguida, encerrando o primeiro bis de forma épica.
Por menos de um minuto o palco fica vazio e no segundo bis da noite o The Cure abre sua caixa de hits mais populares e dançáveis. “Lullaby” começa devagar, talvez não tão conhecida pelos menos acostumados com o repertorio, e “The Walk” sacode a todos com seu ritmo frenético, ambas são só uma preparação para o que estava por vir, um aquecimento. Quando os primeiros acordes de “Friday I’m In Love” foram ouvidos não houve como conter, quinze mil vozes acompanharam Robert Smith aos pulos. Não a toa é a segunda música mais ouvida da banda no Spotify( apesar de ter mais execuções do que a primeira). “Close To Me” não deixa o entusiasmo da plateia diminuir. Durante muito tempo se falou da atmosfera claustrofobica da musica, talvez pelo clip onde a banda fica presa em um armário que é jogado no fundo do mar e vai enchendo lentamente. Mas agora ela imprime em todos nós um final de show confortável e aconchegante. Eram os ultimos minutos na presença da melhor banda de todos os tempos, e tínhamos que aproveitar. Bob, no palco, esta feliz, nós, no chão, estamos felizes. “Why Can’t I Be You”, outra mais conhecida dos mais velhos e iniciados, dá uma pequena resfriada, mas é necessário, pois estava na hora dela.
Toda banda que se preze tem um hit que é seu cartão de visitas, sua assinatura, e aquela que os fãs mais radicais tendem a desprezar por acharem que se trata de uma musica popular demais. Qualquer um conhece. “Stairway To Heaven”, “Another Brick on The Wall”, “Here Comes Your Man” e “Anna Julia” são exemplos disso (calma, não estou comparando bandas). Para o Cure, “Boys Don’t Cry” é a sua música mais famosa, então seria normal que um fã como eu, sentisse por ela um certo desprezo, tentando ser mais arrogante e colocando canções desconhecidas e lados B como minhas preferidas (não que eu não faça isso, “To The Sky” estará sempre no meu top 5). Mas tenho uma divida com “Boys Don’t Cry” que nunca esquecerei. Ela me apresentou o The Cure, lá em 1988. Me levou por uma busca por adquirir álbuns atrás de álbuns ate achar um que a trazia. Graças a ela que comprei meu primei vinil do Cure, Disintegration (comecei bem pra caralho). Quando recebi em São Borja, das mãos dos meus pais que foram ate Porto Alegre, o bolachão do Standing On A Beach minha alegria foi indescritível. Para mim será a maior canção pop já escrita e executada. Um refrão pegajoso, uma dor de corno, um pedido de desculpas, um riff assobiável. Lançada em 79, se tornou a musica simbolo dos anos 80, dando nome a varias festas retro dos anos 90/2000. A imagem da sombra de Robert Smith estampada no single( o qual consegui trocando a edição 45 rotações de um amigo pelo meu álbum do Sonic Temple do The Cult) virou a imagem mais conhecida da banda. E óbvio, ela é a musica mais popular da banda no Spotify.
Então, quando Smith cantarolou um Ole Ole Ole meio enviesado muitos já se tocaram que aquela melodia era conhecida. Quando o violão dele emitiu as primeiras notas foi a senha para um terremoto tomar aquele pedaço de Montevideo. Se procurar todas as filmagens de celulares, todas estarão tremidas (a minha inclusive). Mais uma vez o coral de 15 mil fãs acompanhava o refrão paripassu com Bob. O show acaba, estamos satisfeitos. Robert Smith vai de um extremo a outro do palco se curvando para nós. Sozinho, é o último a se despedir, suas últimas palavras “Obrigado, nos veremos novamente, obrigado foi Fucking Great”. Ha dez anos ele fez essa promessa e cá estamos, espero que daqui a dez anos possamos nos ver novamente, Senhor Smith.
Track list
- Alone
- Pictures of You
- High
- Lovesong
- The Last Day of Summer
- Burn
- Fascination Street
- A Night Like This
- Push
- In Between Days
- Just Like Heaven
- At Night
- Play for Today
- A Forest
- Primary
- Shake Dog Shake
- From the Edge of the Deep Green Sea
- EndsongEncore
- Cold
- Charlotte Sometimes
- Plainsong
- DisintegrationEncore 2
- Lullaby
- The Walk
- Friday I’m in Love
- Close to Me
- Why Can’t I Be You?
- Boys Don’t Cry
Belíssimo relato, Antônio!
Das bandas “grandes” que eu curto, o Cure talvez seja a única ainda em atividade a que nunca assisti! Gostaria muito de ter ido a SP no show desta turnê, mas encarar festival a céu aberto aberto, em pé, e em “terras estrangeiras” por sei lá quantas horas não foi algo a que eu estivesse disposto. Para este show de Montevidéu, cheguei a cogitar a viagem, mas quando os ingressos de arquibancada se esgotaram quase antes de colocados à venda e vi que só tinha lugar para pista, acabei desistindo da ideia, outra vez!
Pouco tempo depois da apresentação encontrei no youtube uma filmagem com a íntegra (aparentemente) do show (https://www.youtube.com/watch?v=TpZ_V3DK4yo&t=4090s&ab_channel=ConciertosenArgentina). Não é a mesma coisa que estar lá, mas foi o suficiente para eu afirmar que foi o melhor set list desta turnê sul americana, e que “Cold” foi uma surpresa mais do que agradável para mim! Eu sou daqueles que enaltece mais certas canções “lados B” do Cure em relação a muito “hit” da banda, e, felizmente, Bob Smith parece nunca esquecer desse tipo de fã em seus repertórios (afinal, “Burn”, “At Night” e mesmo “Charlotte” não são dos maiores sucessos do grupo, certo?), e acaba fazendo uma apresentação tanto para os já “convertidos” quanto para os fãs casuais que só querem ouvir “aquela que toca no rádio” e que eles, muitas vezes, nem sabem o nome direito (e o Cure tem várias destas, praticamente todas incluídas no repertório desta apresentação).
Acho difícil, pela idade dos caras, uma nova vinda à América do Sul no futuro, mas, se acontecer, tomara que não leve mais dez anos, não, e sim que seja em breve! Enquanto isso, fico aqui aguardando o tão esperado “novo álbum de est´údio”, o qual já está há tempo tempo anunciado que já parece mais lenda urbana do que realidade (mas, se até o Chinese Democracy do Guns foi lançado um dia, quem sabe o disco novo do Cure também não chegue a nós no futuro, não é mesmo?).
Valeu pelo texto!