Resenha de Livro: Bono – Surrender
Por Micael Machado
O livro Surrender: 40 Músicas, Uma História (no original: Surrender: 40 Songs, One Story) não é a história do U2. Também não é a história de Bono, o vocalista da banda. É a autobiografia de Paul David Hewson, um filho, irmão, marido, pai, amigo fiel de seus amigos, religioso, ativista (político e ambiental, dentre outros interesses), “atualista” (ele explica o termo em um dos capítulos da obra) e um artista que (aparentemente, apenas de vez em quando) “incorpora” a persona de cantor em uma banda de rock (cantor este que já foi Bono Vox, depois virou Bono, The Fly, MacPhisto, até voltar a ser Bono outra vez). É claro que a história da banda permeia e perpassa as 640 páginas do livro (lançado no Brasil pela editora Intrínseca, com excelente tradução de Rogério W. Galindo), divididas em 40 capítulos (cada um levando o nome de uma música da banda, as quais não são as mesmas presentes no disco Songs Of Surrender, lançado como “acompanhamento” ao livro) supostamente escritos pelo próprio Paul, mas o U2 está longe de ser o principal foco da narrativa.
A perda precoce da mãe (quando Paul tinha apenas 14 anos de idade), o difícil relacionamento com o pai (cheio de altos e baixos) e com o irmão mais velho (que, pelo texto, parece ser meio ausente na vida do rapaz), a amizade com outros garotos de Cedarwood Road, a rua de Dublin onde morou pela infância, adolescência e começo da vida adulta, o encontro e a fulminante paixão (descoberta ainda na adolescência) com Alison Stewart, que viria a se tornar sua esposa e mãe de seus quatro filhos, os primeiros encontros (ainda na escola) e os ensaios iniciais com aqueles que viriam a ser os outros membros do U2, e as inseguranças de um Paul ainda adolescente permeiam as primeiras páginas do livro, que segue em ordem cronológica, focando hora na música, hora na vida pessoal, hora em pensamentos e nas dúvidas (pessoais, religiosas, filosóficas) do autor, narrando a trajetória do homem Paul em paralelo com a história da banda da qual ele faz parte.
É o sucesso e a visibilidade que o U2 alcança que permitem que Paul participe, como Bono, do Live Aid, em 1985. A partir daí, o lado ativista do cantor se intensifica, e, se antes ele e a esposa se preocupavam mais com questões locais da Irlanda (o antigo conflito religioso entre católicos e protestantes que separa os irlandeses é tratado em vários pontos do livro), este evento faz com que o casal passe a se preocupar mais com as mazelas da África e a lutar para melhorar a situação dos habitantes daquele continente (seja em questões financeiras, quanto em questões de saúde, especialmente na luta pelo tratamento das pessoas com Aids), inclusive com várias visitas a diferentes países africanos, as quais são narradas por Hewson de uma forma que deixa explícita as dificuldades dos habitantes locais e daqueles que tentam lhes ajudar, sem nenhuma “passação de pano” para a situação caótica de alguns países do continente, tanto em termos econômicos, quanto em termos sociais. Os problemas da América Central também preocupam ao casal, com Paul compondo “Mothers of the Disappeared” depois de conhecer as mães de El Salvador que haviam perdido seus filhos durante a guerra civil no país, e que, como o autor escreve, “não apenas sofreram a dor de perder seus entes queridos, como foram submetidas ao insulto adicional de não conseguirem recuperar seus corpos”.
É este lado ativista que traz para a narrativa a participação de importantes líderes mundiais, como o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, a ex-chanceler alemã Angela Merkel, o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbatchev, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, os ex-presidentes dos Estados Unidos Bill Clinton e Barack Obama, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o também músico Bob Geldof, “figurões” como Steve Jobs e Bill Gates e até o Papa João Paulo II. A participação de Paul em reuniões com todas estas pessoas (em épocas diferentes) para tentar perdoar a dívida externa dos países africanos, para tentar conseguir condições melhores de tratamento da epidemia de AIDS ou para construir escolas e hospitais no mesmo continente, junto a entidades como a RED ou a ONE (ou por outras causas importantes para o autor) ocupa boa parte das páginas do livro, e os encontros que o ativista Paul tem com estas pessoas e com outras menos famosas, mas não menos importantes ou interessantes, levam a relatos por vezes engraçados, em outros momentos tensos, mas, em sua maioria, comoventes e reveladores sobre a difícil situação das pessoas em um continente ao qual seria muito fácil para um milionário como ele simplesmente fingir ignorar a existência, mas para quem Hewson se dedica de corpo e alma, muitas vezes em detrimento do tempo que dedica a seu casamento e à sua banda. Pessoalmente, confesso que achei muito extensa a quantidade de páginas que abordam este lado “ativista” do autor, mas o texto deixa muito clara a importância desta faceta na vida de Paul, e o quanto ele se dedica de corpo e alma às questões que abraça!
Já o lado artista (e o sucesso do U2) permite o encontro do autor com muitas figuras lendárias do mundo da música. Se algumas delas não chegam a ser surpresa, por já terem gravado ao lado do U2 ou de Bono (como os produtores Brian Eno, Daniel Lanois, Steve Lillywhite e Flood, ou os músicos Bob Dylan, B.B. King, Johnny Cash, Luciano Pavarotti ou Frank Sinatra), outras surgiram de forma, para mim, bastante inesperada, como é o caso do cantor Michael Hutchence (do INXS), do produtor Quincy Jones, da cantora e poetisa Patti Smith e dos músicos Prince e Paul McCartney. Assim como ocorre com os líderes mundiais com quem o ativista Hewson se reúne, os encontros com estas personalidades do mundo do show business (e com outras, como as supermodelos Naomi Campbell, que chegou a ser noiva do baixista Adam Clayton, e Helena Christensen, ex-namorada de Hutchence) também rendem momentos por vezes engraçados, por vezes tocantes, para as páginas do livro.
O relacionamento com os colegas de banda (para quem ainda não sabe, o guitarrista The Edge e o baterista Larry Mullen Jr., além do já citado Adam Clayton) é muito mais focado na amizade entre os quatro e na união permanente entre eles, mesmo com alguns conflitos e dificuldades ao longo das décadas, do que nos aspectos “técnicos” da banda ou de sua trajetória. Fica claro ao longo do livro o respeito e a admiração de Paul por seus companheiros, algo que parece recíproco por parte deles, apesar de muitas vezes o cantor se colocar em posição mais “afastada” do grupo devido a suas muitas atividades “paralelas”, principalmente como ativista. Vários membros do “staff” do grupo também merecem destaque no livro, em especial o ex-empresário Paul McGuinness e a coreógrafa Morleigh Steinberg, que viria a ser esposa de Edge. Embora, como já coloquei, o U2 não seja o foco principal do livro, os trechos sobre a banda são, de longe, os mais interessantes para mim, e oferecem a visão de Paul sobre as diversas “fases” do grupo, e como e por que a música da banda foi mudando com o tempo, saindo de um quase pós punk, ganhando influências da música norte-americana, experimentando com elementos eletrônicos e depois voltando a um som mais simples e próximo daquele feito no início de sua discografia.
Surrender: 40 Músicas, Uma História não é o livro definitivo sobre o U2, mas é um belo relato sobre a vida de seu cantor, que, como dito antes, é apenas uma das facetas que Paul David Hewson assumiu ao longo de sua vida. Se você for fã da banda ou do cantor, certamente, é leitura obrigatória. Se não for, pode, mesmo assim, ainda lhe render alguns bons momentos de leitura. Vale a pena arriscar!