“When the Tigers Broke Free”: Uma Ode Musical à Memória e Perda
Por Fernando Bueno
Muita gente já viu o filme que levou o álbum The Wall para as telas. O formato foi um sucesso e muita gente cita esse exemplo como uma possibilidade de outros álbuns se tornarem filmes também. Porém poucos se dão conta que a música de abertura do filme não está no álbum. A música em questão é “When the Tigers Broke Free” e ela vai ser o tema desse nosso texto em que faremos uma abordagem histórica, emocional e musical.
Como dito acima a faixa está presente no filme e não consta no álbum que foi lançado em 1979. Em disco saiu como um single com o nome de The Wall (Music From the Film) no mesmo momento em que o filme dirigido por Alan Parker estava estreando. No filme a primeira parte da música é apresentada logo no início em que mostra pela primeira vez o personagem Pink, interpretado por Bob Geldolf, sentado em frente à um televisor assistindo o noticiário. Logo mais na frente do filme o restante da música é apresentado quando o personagem já está ali no início de sua adolescência. A curiosidade é que essa não é a única música que entrou no filme e que não está originalmente no disco, pois “What Shall We Do Now” também é uma das passagens marcantes do filme. Alguns bons anos depois, já no ano 2000, sai um disco contendo gravações ao vivo do álbum The Wall, chamado Is There Anybody Out There? The Wall Live 1980-81, a faixa entrou ligando ‘Empty Spaces” à “Young Lust”, como é no filme. Outra curiosidade é que uma das melhores músicas, essa sim que entrou no disco, “Hey You” ficou de fora do filme.
Na película de Alan Parker, “When The Tigers Broke Free” ajuda a contextualizar a história de Pink, o personagem principal, cuja vida é profundamente afetada pela perda de seu pai na guerra. Essa inclusão no filme adiciona uma camada extra de profundidade à narrativa geral de The Wall, ampliando o tema da ausência paterna e da dor emocional.
Musicalmente, “When the Tigers Broke Free” é uma composição orquestral que se desvia do estilo típico do rock progressivo do Pink Floyd, outras músicas nessa linha do mesmo álbum são “Vera” e “Bring the Boys Back Home”, sendo essa segunda o lado B do single lançado em 1982. A música começa com um toque suave de piano, seguido por uma orquestração rica e dramática, que realça a gravidade do tema, bem como a futilidade e o horror da guerra. Um detalhe bastante curioso é que David Gilmour, hoje em dia um desafeto de Waters, é creditado como produtor da música.
É claro que além de ser importante para o filme a música é uma obra profunda que encapsula a dor da perda pessoal de Roger Waters. Ela relata a morte do pai de Roger Waters, Eric Fletcher Waters, durante a Segunda Guerra Mundial. Eric Waters era um segundo-tenente do Exército Britânico que morreu em 18 de fevereiro de 1944, na Batalha de Anzio, na Itália. Roger Waters tinha apenas cinco meses quando seu pai foi morto, e essa perda marcou, e ainda marca, profundamente sua vida e carreira artística. A voz de Roger Waters é crua e emocional, transmitindo a dor e a raiva que ele sente pela perda de seu pai. O Wikipedia tem uma página dedicada à essa batalha e o texto pode ser lido aqui.
A letra da canção é direta e poderosa, começando com a imagem chocante de soldados sendo atacados e culminando na revelação de que o pai de Waters foi morto. A canção começa com a linha: “It was just before dawn / One miserable morning in black ’44” (Era pouco antes do amanhecer / Uma manhã miserável em ’44), situando imediatamente o ouvinte no contexto da guerra. A referência aos “Tigers” no título e nas letras se refere aos tanques Tiger, usados pelas forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. A imagem dos tanques alemães quebrando as linhas britânicas é uma metáfora poderosa para a devastação e o caos da guerra. Waters não poupa detalhes ao descrever a cena, criando uma sensação vívida e angustiante enquanto a própria música vai crescendo em tensão.
A batalha em questão foi travada para defender uma ponte e detalha na faixa que algumas centenas de vidas comuns foram o preço dessa defesa. Deixa claro que não houve nenhum sobrevivente da Companhia de Fuzileiros Reais C. Um dos momentos mais interessantes é aquele em que ele descreve que o rei enviou uma carta e debocha da formalidade com a forma de que entregam a notícia. E o trecho “They were all left behind, Most of them dead, The rest of them dying” (Eles foram deixados para trás, A maioria deles mortos, O resto deles morrendo) é bastante forte. A frase final “And that’s how the high command took my daddy from me” (E foi assim que o alto comando tirou meu pai de mim) é particularmente impactante, expressando uma acusação nem um pouco velada contra os líderes militares e a futilidade da guerra. Caso queira se aprofundar ainda mais, a letra completa e sua tradução pode ser encontrada nesse link.
“When the Tigers Broke Free” recebeu elogios por sua sinceridade emocional e pela forma como aborda a perda pessoal e a guerra. A música é uma das mais pessoais de Waters e destaca seu talento para transformar experiências dolorosas, íntimas, em arte poderosa. Embora não seja uma das músicas mais conhecidas do Pink Floyd, ela ocupa um lugar especial no coração dos fãs, especialmente daqueles que apreciam as camadas mais profundas e introspectivas da obra da banda. A canção também serve como uma documentação histórica e um lembrete poderoso do custo humano dos conflitos e uma homenagem comovente a todos aqueles que perderam entes queridos na guerra.
Em conclusão, “When the Tigers Broke Free” é uma obra-prima emocional que destaca o talento de Roger Waters como compositor e contador de histórias. Através de sua música, Waters consegue transformar sua dor pessoal em uma mensagem universal sobre a perda e a futilidade da guerra, tocando profundamente o coração de seus ouvintes.
Alguns anos depois a faixa foi acrescentada ao set list de The Final Cut. Para quem comprou apenas os álbuns e não tem o single é um jeito interessante de ter a música, porém me incomoda um pouco uma faixa com tema da Segunda Guerra mundial entrar em um disco que, apesar de também ter o tema de guerra, foca mais no conflito entre Inglaterra e Argentina pelas ilhas Falklands (ou Malvinas para os sulamericanos). Talvez fosse melhor ter entrado em uma reedição de The Wall como uma faixa bônus. Por outro lado, The Final Cut traz uma faixa com o nome de seu pai “The Fletcher Memorial Home”. O mesmo desejo eu tenho para com “What Shall We Do Now”, que poderia ser incorporada ao set list do álbum já que com as edições em CD o tempo total do álbum não seria mais um empecilho. Imagino que ela não entrou na versão inicial por questão do limite de tempo que a mídia tinha. Independente disso o importante é que a faixa está disponível e podemos ouvir vez ou outra.Em 2015 em um lançamento em vídeo chamado Roger Waters, The Wall, o músico mescla imagens do show da sua então turnê mundial tocando o famoso álbum na ìntegra com trechos documentais. Em uma das passagens Waters visita a região da famosa ponte na Itália, um momento bastante tocante.
Quem me conhece sabe da minha enorme admiração pelas obras “clássicas” do Pink Floyd: Meddle, The Dark Side, Wish You Were Here, Animals, The Division Bell e, claro, The Wall – tanto o LP duplo de 1979 quanto o filme de 1982. Uma obra monumental que até hoje continua a atravessar gerações através dos tempos. Ótima análise do Fernandão sobre um dos momentos mais marcantes da trama, e essa foto da família Waters (com o Roger ainda bebê) é realmente de cortar o coração…