As discografias britânica e americana das bandas dos anos 60: Por que as diferenças?
Por Marcello Zapelini
Parte I: The Beatles, The Rolling Stones e The Who
The Beatles
Você pode não gostar deles, mas não pode negar que os quatro rapazes de Liverpool foram responsáveis por transformar a Inglaterra de seguidora em líder no mercado de rock. Antes deles, quem mais vendia discos de rock por lá? Cliff Richard, uma “resposta” mal-ajambrada a Elvis que nunca conseguiu muito sucesso fora das ilhas britânicas. The Beatles contavam com o apoio de uma gravadora poderosa, a EMI, na Inglaterra – mas nos EUA suas gravações foram originalmente vendidas para a Vee-Jay, a Swan e a Tollie Records, até que a Capitol se deu conta de que estava perdendo a oportunidade de ganhar muito dinheiro.
Introducing The Beatles saiu pela Vee-Jay como o primeiro LP americano do grupo em janeiro de 1964, e, em comparação com Please Please Me, primeiro LP britânico que saíra em março de 1963, não se saía tão mal: apenas duas músicas foram cortadas, “Ask Me Why” e “Please Please Me”. A capa proclamava orgulhosamente England’s No. 1 Vocal Group, mas meros dez dias depois desse lançamento a Capitol colocava no mercado Meet The Beatles!, com uma capa baseada em With the Beatles, que saíra em novembro de 63 na Inglaterra; aqui o negócio ficou mais grave, pois das 14 músicas originais apenas 9 apareceram no LP americano, com “I Saw Her Standing There” (que abria tanto Introducing… quanto Please…) sendo reprisada em Meet The Beatles, e outras duas (“I Want to Hold your Hand” e “This Boy”) completando o álbum de 12 músicas. Além disso, passava por cima do disco da Vee-Jay e anunciava-se como o primeiro LP dos britânicos! O truque foi seguido em The Beatles Second Album, lançado em abril de 1964, que trouxe as cinco músicas de With The Beatles que faltavam, mais “She Loves You”, alguns lados B e duas músicas que sairiam no EP britânico Long Tall Sally.
Mas o pior ainda estava por vir. A Hard Day’s Night foi lançado na Inglaterra como um LP de 13 músicas com as sete músicas apresentadas no filme e mais algumas inéditas. Nos EUA, o disco saiu pela United Artists (sabe-se lá Deus porque) com 12 faixas, oito do LP britânico (as sete do filme, mais “I’ll Cry Instead”) e quatro versões orquestradas da trilha sonora! Não resisto a uma nota sentimental: quando comecei a comprar discos no começo dos anos 80, o LP brasileiro ainda tinha o título Os Reis do Iê-Iê-Iê, tal como o título do filme no nosso país. Um mês depois (!) as músicas que faltavam, mais o resto de “Long Tall Sally”, algumas músicas reprisadas de A Hard Day’s… e até a versão em alemão de “I Wanna Hold Your Hand” saíram nos EUA como Something New By The Beatles. E como a Capitol não dormia no ponto, um álbum duplo contendo sobretudo entrevistas saiu como The Beatles Story em novembro de 64 – o sexto lançamento “oficial” em LP da banda em dez meses; esse disco de entrevistas tentava retirar do mercado um outro álbum da Vee-Jay que também trazia falação. Para o Natal, ainda sairia The Beatles ‘65 no lugar de Beatles For Sale, trazendo oito músicas desse álbum britânico mais os tradicionais compactos.
No ano de 1965, The Early Beatles (cuja capa trazia a foto da contracapa de For Sale) saiu em junho e garantiu o lançamento pela Capitol do material que anteriormente tinha sido disponibilizado pela Vee-Jay, datado de Please Please Me. Dois meses depois, Beatles VI trouxe as músicas que faltavam de For Sale, algumas que ainda iriam sair no “Help” inglês e mais algumas faixas de compactos, incluindo “Bad Boy” e “Dizzy Miss Lizzy”, gravadas especialmente para o mercado americano; essas covers de Larry Williams sairiam na coletânea A Collection of Beatles Oldies e em Help! na Inglaterra. Esse disco sairia nos dois países em agosto de 1965, Help!, mais uma vez em edições diferentes, pois o LP americano mais uma vez trouxe música incidental do filme que não apareceu no britânico – até porque Beatles VI já tinha trazido algumas músicas do lançamento na terra natal dos Beatles. Ainda assim, o público americano precisou esperar até 1966 para ter acesso a boa parte do lado B do LP britânico – e no meio disso saiu Rubber Soul.
Lançado em dezembro de 1965, Rubber Soul pelo menos tem a mesma capa nos dois países, mas só dez músicas da edição inglesa aparecem na americana (com “I’ve Just Seen a Face” e “It’s Only Love” completando 12 músicas contra 14 na edição inglesa). As quatro que faltavam somaram-se ao resto do Help! inglês e, com três músicas que sairiam na Inglaterra em Revolver, teve-se em junho de 66 o famoso disco com os quatro açougueiros, Yesterday… And Today. Isso levou a mutilar Revolver, que saiu com apenas 11 músicas nos EUA contra 14 na Inglaterra. A confusão acabaria em Sgt. Peppers…, mas voltaria com Magical Mistery Tour, que na Inglaterra saiu como dois EPs (seis faixas no total) e nos EUA como um LP de onze músicas, trazendo as outras músicas lançadas pela banda em 1967 que não estavam nos dois lançamentos.
Nos anos 80, a EMI padronizou o catálogo dos Beatles a partir das edições inglesas; os álbuns da Capitol se tornariam raridades até serem relançados em boxes específicas e edições individuais. Se desconsiderarmos The Beatles Story, o catálogo americano registra 19 LPs (incluindo a coletânea Hey Jude, lançada no começo de 1970, e que não saiu nos EUA e, no Brasil, curiosamente a maçãzinha da Apple Records na contracapa seria vermelha) contra 14 do britânico (incluindo A Collection of Beatles Oldies, e considerando o relançamento de Magical Mistery Tour em LP igual ao americano, o que ocorreu em 1976). No final das contas, se alguém quiser ter todo o material lançado pelo grupo durante sua existência, e mais as principais raridades, basta ter os 13 discos britânicos originais e o excelente álbum duplo Past Masters vols. 1 & 2 (logicamente, os completistas precisam dos três volumes da série Anthology, das box sets comemorativas dos álbuns originais e, agora, das novas versões das coletâneas 1962-66 e 1967-70). Mas para quem quiser os discos originais, a discografia britânica é preferível.
The Rolling Stones
O catálogo dos Rolling Stones é menos confuso que o dos Beatles, mas, ainda assim tem seus probleminhas. The Rolling Stones saiu como England’s Newest Hitmakers nos EUA, com “Not Fade Away” (que chegara ao 3º lugar na parada inglesa e não saiu em LP na época) abrindo o disco; no resto, a versão para “Mona (I Need You Baby)” do álbum inglês desapareceu do americano! Após o primeiro álbum, a banda gravou o EP Five by Five na Chess Records, mas o disquinho não saiu nos EUA – que contra-atacaram com “12×5”, trazendo as cinco músicas do EP, a versão de “Time is on my Side” que saíra em compacto nos EUA (diferente da inglesa: ela começa com órgão e não traz as notas de guitarra), “It’s All Over Now” (que saíra em compacto na Inglaterra, mas não nos EUA), e mais cinco músicas. Destas, apenas “Grown Up Wrong” e “Suzie Q” sairiam no The Rolling Stones No. 2, lançado em janeiro de 1965 na Inglaterra. Para não ficar para trás, em março de 1965 saiu The Rolling Stones Now nos EUA, trazendo sete das músicas de No. 2 – mas “Everybody Needs Somebody to Love” foi reduzida a quase metade do original!
Para completar o LP, “Mona” encontrou lugar, e duas músicas lançadas em compacto, “Little Red Rooster” (que liderou a parada britânica, mas não saiu nos EUA) e “Heart of Stone” (que não saiu na Inglaterra como compacto, mas vendeu bem nesse formato nos EUA), e “Oh Baby (We Got a Good Thing Goin’)” e “Surprise Surprise” foram incluídas. É interessante observar que as capas de No. 2 e 12×5 eram quase idênticas, usando as mesmas fotos.
Out of Our Heads seria o primeiro disco a ser lançado nos dois países com o mesmo título, mas são muito diferentes! A edição americana saiu primeiro, em setembro, e trazia “Satisfaction” e “The Last Time”, compactos de sucesso nos dois lados do Atlântico, mais uma versão ao vivo para “I’m All Right”, extraída do EP Got Live If You Want It!, que só saiu na Inglaterra, “Play With Fire”, “The Spider and the Fly” e “One More Try”; seis músicas (“Mercy, Mercy”, “Hitch Hike”, “That’s How Strong My Love Is”, “Good Times”, “Cry To Me” e “The Under Assistant West Coast Promotion Man”) aparecem no LP britânico, que ainda inclui “Oh Baby” e “Heart of Stone”, que os americanos conheciam do Now, e mais “She Said Yeah”, “Gotta Get Away”, “Talkin’ ‘Bout You” e “I’m Free”. Nesse caso, os dois discos têm capas diferentes, sendo que a da versão americana fora tirada nas sessões da foto que ilustra 12×5 e No. 2, e a da inglesa viraria a do LP americano December’s Children (and Everybody’s).
Esse disco trouxe as quatro músicas que faltavam do Out of Our Heads inglês, e mais “As Tears Go By” e “Get Off Of My Cloud” (com seu lado B, “The Singer Not the Song”), que fizeram sucesso dos dois lados do Atlântico. O LP se completa com mais duas músicas do EP Got Live…, “Route 66” e “I’m Moving On” (assim, só o medley com “Everybody Needs Somebody to Love” e “Pain in My Heart” ficou de fora), uma do primeiro EP da banda, de 1964 (“You Better Move On”), e duas inéditas, “Look What You’ve Done” e “Blue Turns to Grey”. Uma curiosidade: December’s Children… saiu no Brasil nos anos 60 como As The Years Go By, mas é bem difícil de se achar – teria sido relançado no começo dos anos 80, mas nunca o vi, e olha que o procurei por anos.
Em 1966, o LP ao vivo Got Live If You Want It saiu nos EUA, mas não na Inglaterra (só seria lançado lá – e aqui – nos anos 80!), sem trazer nada do EP britânico de mesmo nome – que no final das contas não teria suas músicas integralmente lançadas nos EUA até a adoção dos CDs, quando coletâneas de compactos foram lançadas. Aftermath, primeiro álbum inteiramente composto por Jagger e Richards, mas de novo há diferenças entre eles: o LP britânico, lançado em abril, traz 14 músicas, e o americano, lançado em julho, 11 – uma delas, “Paint it Black”, não saiu no britânico. Assim, os americanos ficaram sem “Mother’s Little Helper”, “Out of Time”, “Take it or Leave it” e “What to Do”, diminuindo o disco em dez minutos. A capa americana é melhor, na minha opinião.
De maneira semelhante, Between the Buttons compartilha dez músicas, bem como a capa, com o álbum americano trazendo “Let’s Spend the Night Together” e “Ruby Tuesday” no lugar de “Please Go Home” e “Back Street Girl”. Essas duas músicas limadas, mais as quatro do Aftermath britânico (ainda que “Out of Time” tenha sido editada em mais de 1/3 da duração original) se juntaram a “Have You Seen Your Mother Baby, Standing in the Shadow” e três músicas inéditas até então (“My Girl”, “Ride On, Baby” e “Sittin’ on a Fence”) para formar a coletânea Flowers, exclusiva dos EUA – e curiosamente o LP se completou com “Let’s Spend…” e “Ruby Tuesday”, que estavam no Between… americano, mas não no inglês, e nesse mercado. Flowers sairia apenas na década de 80. Um detalhe interessante: os rostos dos Stones na foto da capa do Aftermath britânico foram recortados para serem montados nas flores na capa de Flowers.
Na sequência, Their Satanic Majesties Request saiu idêntico nos dois países, e daí em diante os discos foram padronizados conforme os originais britânicos – mas as coletâneas são um caso à parte, com Hot Rocks e More Hot Rocks vendendo bem nos EUA e Rolled Gold sendo exclusividade britânica. Diferentemente do caso dos Beatles, o catálogo dos Rolling Stones acomoda bem as versões americanas e inglesas, sendo recomendável a quem quer seguir a coleção britânica adquirir 12×5, Now, Out of Our Heads americano, December’s Children, Got Live… e Flowers. A menos que seja um fã ocasional, não recomendaria as versões americanas de Aftermath e Between the Buttons, e The Rolling Stones é preferível a England’s Newest Hitmakers. Dessa maneira, o recomendável seria ter versões americanas e britânicas da maior parte dos álbuns dos Stones.
The Who
O caso do The Who é bem mais simples do que dos outros dois gigantes do rock inglês dos anos 60. Em primeiro lugar, a banda tem uma discografia bem menor: se os Beatles lançaram 13 discos de estúdio (e incontáveis compactos) entre 1962 e 1970, The Who lançou dez entre 1965 e 1982. Além disso, como se viu, tanto Stones quanto Beatles tiveram seus lançamentos “unificados” em 1967, e The Who lançou apenas dois discos antes desse ano; The Who Sell Out já saiu com a mesma lista de músicas nos dois países. Entretanto, My Generation saiu na Inglaterra em dezembro de 1965 e The Who Sings My Generation em abril de 1966 nos EUA – e como o compacto estava lá, minhas especulações furam um pouco, hehehe… Além da capa, a diferença entre as duas versões reside no fato de que no álbum britânico havia uma versão para “I’m a Man”, de Bo Diddley, que sumiu no americano, substituída por “Instant Party (Circles)”, que o grupo gravou após completar o primeiro álbum e deveria ter sido lançada em compacto, mas os rolos legais entre eles e o produtor Shel Talmy prejudicaram a ideia; para completar, ainda por cima existem três versões diferentes dessa música circulando! O segundo álbum, A Quick One, saiu em dezembro de 1966 na Inglaterra. Como os americanos não são exatamente entusiastas de alguém falar em uma rapidinha, o álbum – com a mesma arte de capa – saiu como Happy Jack em abril de 1967. Em termos de lista de músicas, apenas uma diferença: a versão da banda para “Heat Wave” foi substituída por “Happy Jack”, que saiu como compacto nos dois países (mas com lados B diferentes).
Daí em diante, as diferenças se dariam em torno de coletâneas: em setembro de 1968 sairia The Who on Tour: Magic Bus nos EUA para capitalizar em cima do sucesso do compacto com “Magic Bus”. O título ainda fazia pensar que se tratava de um álbum ao vivo… Um mês depois sairia Direct Hits na Inglaterra, mas não nos EUA. Em 1972, Meaty, Beaty, Big, and Bouncy saiu em ambos os países como a coletânea oficial do grupo – mas a partir daí, muitas outras sairiam, algumas exclusivas, outras não. No caso do The Who, a maior dificuldade em conseguir fazer uma coleção reside no fato de que, ao longo dos anos, muitas músicas ficaram dispersas (quando a box set 30 Years of Maximum R&B saiu nos anos 90, um crítico apresentou uma lista de 28 raridades que não apareceram nela – algumas das quais até agora não encontraram um LP ou CD que as abrigue e estão perdidas por aí), obrigando os completistas a adquirirem várias versões idênticas das mesmas músicas para terem acesso a algumas coisinhas a mais. E hoje em dia vários álbuns originais receberam edições em box set bem especiais, mas a melhor opção para quem quer acessar músicas raras (e não quer investir horrores nas boxes, que são beeem caras) é a box set Maximum A’s and B’s, que traz os compactos originais do grupo (e ainda assim falta coisa). Colecionador, deve preferir a versão americana ou britânica? Em CD eu sugeriria as britânicas, optando pela Deluxe em CD duplo no caso de “My Generation”.
Marcelo
Que fantástico! Lembro que essa ideia das diferençsa entre as dicografias e lançamentos surgiu em uma conversa que tivemos quando estava pesquisando para aquele texto sobre o inicio dos Rolling Stones. Acabei deixando passar e não vi que vc tinha escrito essa primeira parte. Quando saiu a segunda pensei em sentar de boa para ler as duas, não consegui e agora que saiu a terceira estou maratonando ouvindo o primeiro disco do The Who (versão inglesa, claro). Pela sua descrição tudo o que tenho dos Beatles é o que se precisa ter…rs. Ainda tenho o ao vivo na BBC.
Até hoje eu não entendo essa necessidade de fazer bagunça que os americanos tinha. Pô!!! faz do jeito certo cacete!!!
Obrigado, Fernando! Aliás, obrigado também por ter dado a ideia de fazer essa série. Acho que um fator que passou desapercebido ao tratar das diferenças é que os americanos pensavam muito nos fãs ocasionais dos grupos, por isso essa insistência em colocar os compactos de sucesso nos LPs – o cara gostava da música, mas não era colecionador, então comprava o LP “puxado” pelo compacto nas paradas.
Como as gravadoras nunca desistem, li nesse fim de semana que a Capitol está colocando no mercado americano uma box com os seis primeiros LPs dos Beatles em vinil de altíssima qualidade e arte de capa original. Eu, pessoalmente, já fico contente com a minha coleção baseada na discografia britânica!!