Datas Especiais: 40 anos de Argus
Não é preciso dizer quanto a música é injusta com alguns grupos. Várias são as bandas que possuíam um potencial extremamente elevado, mas que dificilmente receberam um reconhecimento muito grande, e só acabaram sendo levadas ao grande público através de nomes muito famosos dentro do rock, mas que acabaram se apoiando nos ombros de verdadeiros gigantes combalidos por uma mídia sem fundamento e por que não, preconceituosa.
Um dos principais nomes dessa geração de “bandas desconhecidas” é o Wishbone Ash. Ao lado de Thin Lizzy e UFO, o grupo britânico é uma das referências de um dos principais nomes do heavy metal mundial, o Iron Maiden, e muito devido a um álbum que completa hoje 40 anos. Trata-se da obra-prima Argus, lançada no dia 28 de abril de 1972.
Andy Powell e Martin Turner |
Este é o terceiro disco do Wishbone Ash, e foi um divisor de águas na carreira do grupo. Se os dois primeiros discos (Wishbone Ash, de 1970, e Pilgrimage, de 1971) enalteciam um lado próximo ao progressivo, onde as habilidades musicais eram uma mescla de jazz, hard rock e pitadas leves de psicodelia, foi com Argus que o quarteto formado por Martin Turner (baixo, vocais), Ted Turner (guitarra, vocais), Andy Powell (guitarra, vocais) e Steve Upton (bateria) consolidou as famosas guitarras gêmeas, sendo o embrião do que hoje é convencionado chamar de metal melódico.
Para muitos, esse é o grande disco da carreira do Wishbone Ash. E não é por pouco. As sete canções de Argus são reflexivas, envolventes, sedutoras e muito belas, com um trabalho de arranjo elaborado por Turner e Powell que surpreende justamente pela beleza e perfeição, sendo difícil (ou quase impossível) encontrar algo similar ao que foi gravado no LP nesta mesma época.
O disco abre com o lindo dedilhado de violão de “Time Was”, uma das mais belas canções do grupo. A marcação do baixo de Martin, junto aos violões, traz a voz do trio Ted, Martin e Andy. O arranjo vocal é perfeito, sobrepondo o dedilhado do violão com uma sutileza inigualável dentro da discografia do Wishbone. Efeitos na guitarra aparecem complementando a parte instrumental, imitando cordas, e o dedilhado continua a encantar o ouvinte.
Repentinamente, a canção muda com a entrada da bateria, e assim, o rock toma conta. Três acordes e muita pegada acompanham a letra, cantada por Martin, alternando momentos calmos com momentos mais agitados, chegando ao primeiro grande solo de guitarra do LP, feito por Ted e com a perfeita companhia de Martin, Powell e Upton.
Os vocais voltam, cantando mais uma pequena estrofe, e então, o tema das guitarras gêmeas surge, levando para uma pequena ponte, que nos envia para o segundo solo da canção, elaborado agora por Powell, em um estilo muito mais hardeiro do que o de Martin, usando a escala pentatônica para marcar os bends rasgados no cérebro do ouvinte. O embalo traz de volta a letra, cantada agora por Ted e Martin, e então, essa pérola encerra-se com mais um solo, com Powell soltando mais uma vez os dedos, concluindo então com uma rápida virada de bateria.
A bonita introdução de “Sometime World” nos apresenta uma balada, levada pelo embalo dos violões, a bateria de Upton e as tímidas notas de guitarra que se revelam durante a letra cantada por Martin. A simplicidade do primeiro solo de Ted é emocionante, e o trecho cantado em dueto por Martin e Ted comove ainda mais. O refrão em diminutas, junto da maluca sessão instrumental, abre espaço para a pauleira pegar, com destaque para a sensacional escala de baixo, deixando as vocalizações tomarem conta da canção.
Os vocais voltam, agora cantando forte sobre as escalas de baixo e guitarra, levando ao segundo solo da canção, feito por Powell, com uma pegada típica de seus solos. As vocalizações aparecem novamente, cantando mais uma parte da letra, e levando a mais um solo de Ted, onde o grande destaque é a cozinha Upton / Martin, dando um pique alucinante para as rasgadas notas de Ted entoar o longo solo que conclui outra belíssima faixa de Argus.
A clássica “Blowin’ Free” encerra o lado A, sendo a mais simples das canções do LP. O riff marcante da canção surge imponente, arrastando tudo o que vem pela frente, com a rufada de Upton sendo o divisor de águas. O baixo cavalgante de Martin dá espaço para as vocalizações cantarem a canção mais conhecida do grupo, enquanto ao fundo, as guitarras fazem intervenções e participações discretas. A virada na ponte central é uma aula de melodia, e os vocais entoando “In my dreams everything is alright” é a mais absoluta definição de clássica, seguida pelas notas tristes da guitarra de Martin, que levam para o fantástico e sujo solo central, voltando então ao início da letra, concluindo então com a sequência tradicional das guitarras gêmeas entoando o riff marcado da canção.
Versão inglesa de Argus (Lado B) |
O lado B é diferente do lado A, muito mais pesado e sombrio, a começar por “The King Will Come”, outro clássico dos clássicos no hard setentista. Na verdade, ouvir todo o lado B é lembrar da épica “Phoenix” (registrada no sensacional álbum de estreia do grupo). Logo na introdução, o ritmo marcial da bateria cresce junto com o volume da canção, enquanto Powell delira no wah-wah, para dessa forma explodir no riff central de “The King Will Come”, tendo o baixo novamente como destaque. O trio Martin, Ted e Powell canta junto, acompanhados por um leve dedilhado de guitarra e a marcação de baixo e bateria.
Duas estrofes são entoadas, e a guitarra de Martin muda o andamento da canção, chegando então no belo refrão. O arranjo vocal dessa canção é quase celestial. Após uma pequena passagem das guitarras gêmeas, começa o grandioso solo de Powell, pisoteando o wah-wah sem dó nem piedade, arrancando uivos alucinantes de sua Flying V, para então Martin ficar sozinho, dedilhando acordes soltos. Uma bonita sequência de harmônicos e viradas de bateria acompanham o dedilhado, voltando então à letra, passando por mais um tema das guitarras gêmeas e concluindo com a repetição do riff central.
“Leaf and Stream” parece ter saído de algum álbum da dupla Art & Garfunkel, e é outra aula de arranjo instrumental. Os dedilhados de guitarra acompanham os vocais roucos de Martin, facilmente confundidos com os de John Wetton (tanto que Wetton veio a substituí-lo em 1980). A única percussão é a marcação de um pandeiro meia-lua, que assim como o baixo, acompanham o principal destaque, que é o viajante dedilhado dessa maravilhosa canção. O solo de Powell passa quase despercebido perto do lindo arranjo instrumental de uma curta, mas essencial canção.
O clima sombrio continua com mais um clássico, “Warrior”, tendo o marcante riff da guitarra de Ted, sem nenhuma distorção, abrindo espaço para o magistral solo de Powell. As variações de acordes, seguidas por uma marcação nos pratos, acompanham o tema construído por Powell. A dupla de Turners canta a canção, que desenvolve-se hipnotizante nas caixas de som, tendo sempre as mesmas variações de acordes da guitarra de Powell, e os persistentes pratos de Upton.
Mais uma estrofe cantada e “Warrior” muda totalmente. As guitarras gêmeas aparecem com força, entoando um riff pegado. Martin canta uma pequena frase, e então, os vibratos de Ted nos levam ao refrão. A frase central, “I’d have to be a warrior, A slave I couldn’t be, A soldier and a conqueror, Fighting to be free “, é intercalada por solos individuais de Powell e Ted durante duas estrofes, com um espetáculo a parte para Upton, e então, o dedilhado das guitarras gêmeas surge, trazendo a última repetição do refrão, fechando com um longo sustain de guitarra.
Finalmente, “Throw Down the Sword” surge como uma sequência de “Warrior”, tendo o dedilhado das guitarras gêmeas e um longo rufo de bateria, no mais belo tema do LP. Os acordes soltos dão espaço para a voz de Martin, enaltecendo a ponte central de mais uma bonita e sombria faixa. A segunda parte é cantada pela dupla de Turners, levando então ao maravilhoso solo de encerramento feito pelas guitarra sobrepostas, contando também com a participação especial de John Tout (Renaissance) nos teclados, que encerra de vez esse grande disco.
A turnê de Argus acabou rendendo o excelente ao vivo Live Dates (1973), com a sequência inicial do LP sendo de cara três canções desse clássico (“The King Will Come”, “Warrior” e “Throw Down the Sword”), tendo ainda “Blowin’ Free” no lado C do vinil duplo. Em 2007, foi lançada uma versão DELUXE, com o CD extra trazendo uma apresentação quase na íntegra de Argus na BBC, excluindo apenas “Leaf and Stream” e “Sometime World”, além de outras pérolas como uma magistral versão de mais de dezenove minutos para a épica “Phoenix”.
O Wishbone Ash ainda lançaria diversos outros discos depois de 1973, com muitos altos e baixos que acabaram causando um esquecimento do nome do grupo com o passar dos anos, causado também pela constante mudança de formação que tomou conta do grupo na década de 80. Graças a persistência de Andy Powell (único membro original e que nunca saiu da banda), os britânicos mantém-se na ativa nos dias de hoje, tendo lançado seu último álbum ano passado, o interessante Elegant Stealth, e para este ano já está programada uma turnê pela europa.
Argus foi eleito o melhor disco de 1972 pela revista Sounds, e conquistou gerações de fãs desde então, entre eles Steve Harris, que nunca negou a influência das guitarras de Powell e Turner no que o Iron Maiden fez anos depois. Porém, com o passar dos anos, para grande parte da massa roqueira mundial, Argus acabou sendo apenas um disco referência para a influência de Harris e cia. virando mais um item de colecionador do que o proprietário de um lugar entre os melhores discos da história do rock.
Pouco a pouco, felizmente essa ideia está sendo revertida, e hoje, passados quarenta anos de seu lançamento, Argus já figura nas listas de, se não entre os melhores, entre os mais importantes discos de todos os tempos, permitindo aos jovens atuais descobrir aquele que é o avô do metal melódico.
Uma obra perfeita, sem tirar ou botar, e que deve ser ouvida para todos aqueles que desejam saber da onde surgiram os duelos de guitarras gêmeas apresentados por grupos como Judas Priest, Iron Maiden e outros da geração NWOBHM.
Track list
01. Time Was
02. Sometime World
03. Blowin’ Free
04. The King Will Come
05. Leaf and Stream
06. Warrior
07. Throw Down the Sword
Cansei de ler ao longo dos anos os críticos de rock descerem o pau no Wishbone Ash. Robert Christgau, para citar um dos mais célebres, dava nota D- para a banda sem dó nem piedade. Diziam os críticos que a banda carecia de talentos genuínos e que não passava de um grupo de terceiro escalão. Por outro lado, no comecinho do Wishbone Ash, Andy Powell foi convidado por George Harrison e também por Ringo para participar de algumas gravações deles na Apple. Os dois beatles conheciam o álbum de estréia da banda e o tratavam com deferência. E, estranhamente, Andy acabou recusando (!!!!!) um convite do próprio John Lennon para participar das sessões do seu álbum Imagine alegando estar “cansado”. Ted Turner, ao contrário, aceitou e participou da faixa “Crippled Inside”. Evidente que um músico sabe avaliar muito mais o talento de outro músico do que um crítico musical que, invariavelmente, só sabe tirar som do teclado de sua máquina de escrever e, na maioria das vezes, com talento duvidoso. Argus, para mim, é o grande disco do Wishbone. A capa desse álbum também é um dos grandes trabalhos da Hipgnosis. Muito bom, Mairon!
Marco, achei que tinha agradecido tuas palavras, mas como não consta por aqui, te agradeço então. Muito obrigado pelo texto. Eu prefiro os dois primeiros da banda, mas não posso negar que Argus é O GRANDE DISCO que o Wishbone fez. Abraços
Antes tarde do que nunca, hehe… nem me reconheci escrevendo o que comentei há 5 anos atrás. Mas o Argus continua sendo um puta disco.
Marco… as notas ruins foram pra esse disco também ????
Gozado que várias bandas que antes eram massacradas pela crítica estão encontrando a redenção agora…seja em publicações como a Classic Rock, Uncut e…até mesmo a Rolling Stone (Rush na Capa recentemente) … estariam elas a frente de seu tempo ?
Eu generalizei, Fábio. Não me concentrei às críticas de um ou outro álbum, mas no conjunto da obra, hehe… Do Christgau era de se esperar, porque ele sempre foi um roqueiro de direita (é a minha definição para ele, ok?). Das revistas que você citou, a única que existia na época era a RS e não me lembro da opinião deles, mas posso imaginar já que que sempre foi meio tendenciosa e manipuladora. Classic Rock e Uncut são revistas relativamente novas e com uma linha editorial de resgaste dirigida e alimentada pelo mercado de reedições. Acho normal que elas até exagerem na apreciação de determinados artistas, pois são elas (as revistas) que ajudam a aquecer um mercado que lhe interessam. Mas é preciso ter cuidado ao se deixar levar pela opinião de jovens que não viveram a época que estão retratando. Existe sempre uma aura nostálgica nas coisas que escrevem, uma espécie de deslumbramento, entende? Eu gosto muito dessas revistas e do esforço delas para fazer um pouco de justiça a artistas que sumiram da mídia há décadas. Mas o melhor critério é sempre o gosto pessoal.
Quanto às bandas, várias delas estavam à frente do seu tempo (um exemplo disso eram aquelas que lidavam com a eletrônica e que só foram bem avaliadas quando o movimento se consolidou nos anos 80 em diante), mas a grande maioria (e aí eu incluo o Wishbone Ash) era retrato fiel de sua época.
"Mas o melhor critério é sempre o gosto pessoal"
Concordo plenamente… e acho que ao mesmo tempo que a internet tornou o consumo de música algo muito mais raso … também meio que libertou o ouvinte que sabe usá-la da dependencia da opinião do crítico … temos uma grande facilidade hj…só espero que o SOPA não acabe com ela
Abraços
Uma historinha que acho que nunca contei diz respeito ao guitarrista Faiska. Eu o conheci na época desse disco e ele era tarado pelas guitarras gêmeas do Wishbone Ash. A gente costumava se encontrar à tarde na casa de um amigo em comum que no quintal colocava uma caixa na frente da outra e deitava a cabeça entre elas para curtir o trabalho de guitarras como se fossem fones de ouvido gigantes, absolutamente no talo. O Faiska fazia a mesma coisa. Bom esse amigo um dia levantou puto do chão, reclamando que uma das caixas havia pifado. Mas não, foi o tímpano dele que estourou. Ficou surdo daquele ouvido, coitado.
CARVALHO!!!!
Leio sempre as matérias do site e já cheguei a ter a pachorra de tecer um ou outro comentário aqui. Wishbone Ash é uma banda que adoro, uma das melhores dos anos 70, sobretudo na parte instrumental, com suas magníficas “guitarras gêmeas”. Mas o que eu mais gosto neles é o tom melancólico das canções, das quais poderia citar: Persephone, Errors in my Way, Everybody needs a Friend… Banda Absolutamente Underrated. MAIRON MACHADO, se você ainda estiver vivo, mande um salve para este ávido leitor de suas matérias.
Prepare os olhos que amanhã vai ter mais uma matéria falando de Wishbone Ash e mais algumas bandas, Tiago!
André, muito obrigado por responder. Sou fã do site há algum tempo e o considero o site com o melhor conteúdo sobre rock e afins disponível na internet brasileira da atualidade. As matérias são sempre muito bem escritas e detalhadas e o melhor de tudo é que fogem sempre do repugnante lugar-comum que assola os sites do gênero. Gosto sobretudo das matérias sobre Rock Progressivo, discografias comentadas e a sessão “Maravilhas do Mundo Prog” do Mairon (devem ser as afinidades musicais). Desmistificar o bão e véio Rock n Roll como vocês fazem, não é para qualquer um.
Quando for possível, escrevam algo sobre o grande músico Zé Rodrix, suas bandas, suas habilidades, seus grilos. Alguém também deve gostar dele por aí. Espero sinceramente que sim.
Grande abraço.
Tiago, muito obrigado pelos elogios. Ficamos verdadeiramente lisonjeados. Também acho que o Wishbone Ash é digno de muitos louvores. Acho que você vai gostar do que preparamos para amanhã.
Matéria sensacional, parabéns Mairon!
Valeu Diego. abraços
Banda incrível. Disco incrível. Belíssimo trabalho de guitarras. Deve ser descoberto por mt mais pessoas, merece!
Adoro o primeiro, meu preferido. Um disco visceral e Rock n Roll, Argus é MT mais polido. Também gosto dos discos posteriores ao Argus (dos anos 70). Do que ouvi deles nos anos 80, se tornaram oq toda banda dos ano 70 fizeram na década seguinte, infelizmente, mas ainda ei de escutar os outros pra ver no que deram concretamente.
Podiam falar mais do Blue Öyster Cult, Thin Lizzy, Budgie, UFO, Uriah Heep… Enfim, essas bandas de Hard e Classic Rock dos anos 70 q mereciam e merecem mt mais reconhecimento. Já li anteriormente algumas coisas aq, vou garimpar o blog…
Ótima matéria, vlw.
Gleison, tem muitas matérias sobre todas essas bandas que citou. Use o search do site que irá encontrá-las. Abraços!