A segunda criação italiana
Por Mairon Machado (Publicado originalmente no blog Baú do Mairon)
Nos dias de hoje, estamos assistindo a um resgate inacreditável de bandas dos anos 70 das quais nunca ouvimos falar. Graças ao e-bay e aos canais de troca como rapid share, 4-shared, megaupload entre outros, vários cidadões ao redor do mundo tem disponibilizado preciosidades que custam, nas versões originais, muitos kgs de carne e algumas cervejas.
Um desses casos é o da excelente banda italiana La Seconda Genesi. A história deste precursor do rock progressivo italiano começa em Roma, em 1961, com um grupo chamado The Happy Boys. Nele, estavam Paride de Carli (guitarras) e Pier Sandro Leoni (bateria), além de Martino Fontana, Lucio Lucentini, Giuseppe Pompili e Giovanni Ancellotti, e eles tocavam aquele rock tradicional das bandas italianas nas décadas de 50, que segundo Sandro, tinha como principal influência o Shadows.
Paride começou a tocar guitarra quando tinha 19 anos. Antes, fez aulas de violão clássico e também de música latina, aprendendo a tocar desde reggae até bossa-nova, enquanto Sandro aprendeu a tocar sozinho, ouvindo os discos do Shadows.
Peppermint Group
O estilo do Happy Boys nunca agradou a dupla, que decidiu sair e criar uma nova banda. Assim, em 1966, surgiu o The Peppermint Group. Um grupo bem mais maduro, com uma sonoridade mais rocker, e que fez um legado prestando um grande serviço para o rock italiano ao lado de outros como Trolls, Jet, Rokketti e Ghigo. Este grupo inclusive ganhou o prêmio de melhor banda italiana em um concurso nacional de rock, que permitia a banda vencedora excursionar por todo o país.
Essa turnê pela Itália atiçou o sentido de viajar dos garotos, e então, em 1969, Paride, Sandro, Loris Maranci, Enrico Pacchiarotti e Alfredo Bove formaram o Mhanas. O Mhanas fizeram fama, e foram precursores, tocando rock em cruzeiros marítimos dentro do navio Eugenio C., sendo que a maioria dos cruzeiros iam da europa para o Caribe (!), trazendo experiência para os amigos Sandro e Paride.
Em uma das viagens,quando o navio se dirigia para Buenos Aires, o grupo teve a oportunidade de abrir o show da tarde para nada mais nada menos que nosso Vinícius de Moraes (!). Após o show de Vinícius, ambos se juntaram e fizeram um improviso, com o público pedindo “Garota de Ipanema” (em italiano, “La ragazza di Ipanema”), mas que não foi tocada, pois Vinícius acabou se incomodando com os pedidos e decidiu deixar o lugar dos shows. Uma história que já valeria uma sessão inteira.
Mhanas no Flavia Costa
No ano seguinte, o grupo trocou de barco, indo para o Flavia Costa, que fazia excursões entre Miami e Nassau (Bahamas). Após essa louca turnê pelo caribe, que durou no total quase dois anos viajando pelos mares do mundo, o Mhanas voltou para a Itália, e descobriu que o mundo estava se transformando. Entre a efervescente cena rockeira de Roma, bandas como Pink Floyd, Yes, Van Der Graaf Generator e Mothers of Invention estavam rodando direto nas vitrolas das principais lojas da capital italiana, e a sonoridade chocou aos ainda beat Sandro e Paride, que passaram a frequentar cada vez mais essas lojas em busca daquele novo som, deslocando-se para outras cidades, como por exemplo Genova.
Mhanas em ação
Em Genova, encontraram-se com outros músicos que estavam também tendo o primeiro contato com as viajantes composições dos grupos ingleses. Foi assim que surgiram Nazzareno Spaccia (baixo), Giambattista Bonavera (sax, flauta) e Alberto Rocchetti (voz, teclados). Rocchetti havia feito sucesso com o grupo Rokketti, citado anteriormente, e com quem gravou, em 1968, a bolachinha “Due Ali Nel Cuore / Sei Tu” (essa última um clássico dos clássicos italiano, cantada até hoje em qualquer boteco que tenha um cantor italiano), e estava afim de inovar seu estilo musical.
Os cinco rapazes fizeram uma forte amizade, e logo foram reconhecidos e “forçados” a montar uma banda pelo produtor Lucchetti, que batizou o conjunto como Stereo Otto. Começam a ensaiar dia e noite na casa de Paride. Com alguns pequenos shows, angariam um contrato com a Picci Records, onde Lucchetti trabalhava, e acabam participando da bolacha “Padre mio, padre Dio / Lo non vivrò”, de Pierluigi Terri.
Mudam de nome, agora para Stereo Quattro, passando a fazer trilhas para a TV. Com o pouco dinheiro que conseguem angariar fazendo essas participações, decidem investir em instrumentos e também na gravação de um álbum. Paride, que já possuia uma vida estável, incentivou os demais no projeto, e pensando no futuro da banda, decidiu se lançar como artista solo, acompanhado pela Stereo Quattro.
O raro LP Naufrago in Cittá
Assim, gravam o raríssimo álbum Naufrago in Cittá, lançado em 1971 pelo selo Picci e sob o nome de Paride e gli Stereo Quattro. Do material, grande parte era composto por Paride. Apenas a parte de flautas e percussão surgia de improvisos. Ali, está um belo registro instrumental difundido em 11 canções com um predomínio de arranjos clássicos para o violão, onde o talento demonstrado por Paride é de alto nível. Destaque para a linda faixa-título, onde o solo de flauta acompanhado apenas pelo violão é de chorar.
Após a gravação do álbum de Paride, conseguiram confiança para lançar um disco como Stereo Quattro. Porém, a sonoridade da banda já era muito mais próxima ao progressivo inglês do que quando eles começaram. Assim, adotam um pomposo nome, La Seconda Genesi, e passam a cômpor canções para um álbum que seria gravado de forma totalmente independente. Os ensaios ocorriam no porão de uma igreja, e duraram várias semanas.
Em apenas quatro sessões de duas horas cada, estava terminada uma obra fantástica, que foi gravada praticamente ao vivo dentro de um estúdio de gravação de quinta categoria. O mais interessante é que o estúdio era tão precário que diversos problemas técnicos não davam o retorno para Sandro ouvir o que ele estava gravando. Então, para marcar o tempo, Sandro olhava os movimentos das mãos de Paride na guitarra e assim, sabia exatamente o que tinha que fazer!
O único registro do La Seconda Genesi
Com a fita gravada, correm atrás de produtores, mas não são aceitos em nenhuma grande rede. Então, o material chegou nas mãos de Giuseppe Cassia, dono da velha conhecida, mas pequena, Picci Records, que investiu novamente nos garotos e bancou o lançamento do álbum. Em meados de 1972, chegava as lojas o mítico álbum Tutto Deve Finire, um clássico do progressivo italiano.
Trazendo influências do jazz, da música clássica e principalmente do rock britânico, o disco abre com a instrumental “Ascoltarsti Nascere“, onde barulhos de percussão acompanham uma guitarra fantasmagórica, com o wah-wah delirando, enquanto notas de órgão e baixo desfilam entre acordes de sax, em uma assustadora introdução. Bonavera passa a solar em um ritmo apenas dele, enquanto os demais músicos viajam em seus instrumentos, lembrando muito as viagens instrumentais que seriam gravadas posteriormente no álbum The Lamb Lies Down On Broadway, do Genesis.
Os acordes do órgão vão ficando mais fortes, assim como Sandro vai dando ritmo a loucura que está sendo feita no estúdio, de forma lenta, para então Paride assumir o posto de frente dos solos com a cadência da bateria e do baixo bem agitada, tendo como acompanhamento os acordes de órgão e sax. Paride manda ver em um ótimo solo com o wah-wah, e para quem ouve seu disco antecessor, é impossível imaginar que é o mesmo músico.
Paride puxa um riff, que é seguido por baixo, órgão, bateria e sax, encerrando a canção com um sessentista solo de guitarra, que leva para “L’urlo”, onde a percussão de Sandro é seguida pelo baixo cavalgante de Spaccia. Rocchetti executa os acordes do baixo no órgão, enquanto Bonavera viaja no sax, com um ritmo totalmente hipnotizante. O solo de Bonavera é enlouquecedor, com a guitarra entrando e fazendo os acordes do órgão, viajando nesse sistema durante impecáveis 4 minutos, com o sax e a guitarra repetindo o riff final de “Ascoltarsti Nascere” para então entrarmos na dupla “Se Ne Vai Con Noi / Vedo Un Altro Mondo“.
Sandro faz uma marcha de guerra na introdução de “Se Ne Vai Con Noi”, seguido pelos acordes tristes de Rocchetti e Bonavera. Paride e Spaccia passam a acompanhar o andamento fúnebre de Sandro, e então ouvimos os vocais de Rocchetti, cantando uma triste canção em italiano. Vocalizações feitas pelos demais músicos surgem enquanto os acordes de órgão se juntam aos da guitarra e do baixo, para a bateria fazer um rufo e entrarmos no excelente rock de “Vedo Un Altro Mondo”, onde Paride entra executando o riff inicial junto com Spaccia, para Bonavera mandar ver em um ótimo solo de flauta.
Os vocais de Rocchetti são retomados dividindo a melodia vocal com a guitarra, com destaque para a base baixo/órgão, chegando em uma interessante sequência de acordes e viradas de bateria, enquanto Rocchetti executa um fervoroso solo no órgão, para encerrar a faixa e o lado A com a repetição do riff inicial.
O lado B abre com os viajantes 8 minutos de “Dimmi Padre“, onde a introdução com todos os instrumentos repetindo o mesmo ritmo nos leva para um pesado riff de guitarra, acompanhado por baixo, flauta, órgão e bateria, Rocchetti fica sozinho com o órgão, voltando então para o pesado riff e para mais um solo de órgão. Paride faz alguns acordes com a guitarra sem distorção, e então Bonavera passa a solar com a flauta. Baixo, bateria e órgão vão sendo adicionados aos poucos, com Paride repetindo infinitamente os dois acordes. O solo de Bonavera é excelente, e então Sandro novamente começa a ditar o ritmo da canção, aumentando o mesmo enquanto Bonavera perde o fôlego na flauta.
Rocchetti faz viajantes mudanças de acordes no órgão, e também é outro ponto de atenção central. Finalmente, guitarra e flauta passam a fazer um segundo riff juntos, trazendo os vocais de Rocchetti acompanhados apenas pelos dois acordes da guitarra de Paride. A cadência da bateria, baixo e órgão é retomado, e Bonavera faz intervenções com a flauta durante cada estrofe, encerrando a faixa com um insano solo de guitarra, que apesar de não ter muita técnica, é carregado de sentimento.
“Breve Dialogo” é uma breve canção apenas com o violão clássico de Paride e alguns acordes de órgão, lembrando seu álbum solo, seguida pela dupla “Giovane Uomo / Un ‘Infanzia Mai Vissuta”, a qual começa com um embalo fenomenal da guitarra de Paride e do teclado elétrico de Rocchetti. A cozinha manda ver, e então temos os vocais de Rocchetti, com um refrão que repete o nome da canção, para então um solo de bateria levar à instrumental “Un ‘Infanzia Mai Vissuta”, que começa apenas com o violão de Paride, lembrando a canção “Ave Maria” de Bach. Paride começa a solar com o violão por cima dos acordes dedilhados que ele construiu e sobre acordes de órgão, passando então a solar com a guitarra, tendo a bateria, o dedilhado do violão e o órgão como acompanhamentos, em uma linda faixa que encerra com chave de ouro esse único registro da La Seconda Genesi.
Infelizmente, o processo de divulgação do vinil foi totalmente precário. Apenas 200 cópias foram lançadas, cada uma com uma capa diferente, na tentativa de atiçar o ouvinte e aos colecionadores a comprarem todas as cópias. Porém, dessas 200, pouco mais de algumas dezenas foram vendidas. O fato mais interessante é que do ponto de vista de fãs e também da própria mídia italia, La Seconda Genesi era tratada como uma das bandas mais fortes para alcançar o status de a maior banda de rock da Itália (posto que pertenceria dois anos depois ao Premiatta Forneria Marconi).
Uma das diversas capas de Tutto Deve Finire
Porém, o fracasso comercial de Tutto Deve Finire acabou precocemente com um dos maiores talentos da Itália, apesar de permanecerem por mais dois anos, tendo como pontos máximos a participação como acompanhamento do álbum Io, L’Altra Faccia dela Luna, da cantora Fiammetta, e as únicas apresentações no Festival de Vanguarda e Novas Tendências (Festival d’Avanguardia e Nuove Tendenze) realizados em Villa Pamphili e Civitavecchia, ambos em 1975, onde o grupo apresentou Tutto Deve Finire na íntegra.
Paride e Rocchetti passaram a acompanhar o cantor italiano Vasco Rossi, enquanto Sandro lançou-se como artista de estúdio, tendo participado de álbuns diversos pela Itália afora. Quanto a Bonavera e Spaccia, cairam na ostracidade.
O tempo passou e em 1994 ocorreu o resgate de bandas italianas do rock feito pela gravadora Mellow Records, que re-lançou Tutto Deve Finire em CD. Em 2002, uma versão mais caprichada foi lançada pela gravadora Akarma, trazendo Tutto Deve Finire e Naufrago In Cittá no mesmo CD.
Recentemente, o ebay registrou a venda de uma das cópias originais do vinil de Tutto Deve Finire, com um precinho camarada de 2000 euros. Porém, para os que querem conhecer a banda, uma versão em vinil 180 g já foi lançada, e assim como a versão original, possui diferentes capas, todas com a mesma pintura, mas com cores diferentes. Já o cd é facilmente encontrado nas lojas italianas. Passando pela Itália e querendo conhecer algo novo, atire-se de cabeça, pois a sonoridade do La Seconda Genesi é mais que especial.
Muito bom saber da história desse grupo, cujo som é bem legal msm! Que curioso, tocaram em um navio abrindo pro Vinícius de Moraes! ehehehehe
Valeu Mairon!
Abraço!
Ronaldo
Pois é Ronaldo. Eu imagino a tensão que o Vinícius de Moraes deve ter sentido ao saber que aquele grupo que abriu para ele se tornou um dos expoentes do rock na Itália (ele deve ter tido algo como: "eu nunca toquei em um cruzeiro", hehehe)
Não conheço a banda, só ouvi falar vez ou otra. O prog italiano, apesar de manter sempre um nível bem elevado em todas as suas bandas, me parece muito homogêneo, excetuando alguns discos de destaque como o Darwin! e bandas como o Area – que é RIO, nem sei se vale.. Talvez essa Seconda Genesi, por ser pioneira e coisa e tal, traga algo de novo pra mim. Valeu pelo resgate, Mairon!
Groucho, o som do Seconda Genesi é diferente dos tradicionais do prog. Alias, tem muita coisa do prog italiano q nao é convencional. Me falta tempo para divulgar essas bandas, mas um dia chegarei la. Valeu pelo comment
Não sei de que bandas vc tá falando. Arrume tempo! RÇRÇRÇ
Uma delas deve ser o Capitolo 6, não? Ouvi e ouvi essa banda, mas não consegui sacar qual é a deles.
Já das bandas "mais do mesmo" italianas, algumas eu curto um bocado, como o Buon Vecchio Charlie e o Museo Rosenbach, e otras eu ATOOOOOOORON, como o Murple.