Durante o início dos anos 70, praticamente em todo o mundo brotavam grupos de rock adaptados a tocar pesado, com muita distorção e também alguma técnica. Esses grupos foram classificados como hard rock, e deram origem ao heavy metal conhecido posteriormente através de nomes como Judas Priest, Iron Maiden e Saxon.
Alguns desses grupos também foram influenciados por outro estilo que nasceu na mesma época, o rock progressivo. A adaptação da sonoridade hard com o progressivo, gerou canções que acabariam marcando época, e eu posso sem medo dizer que Black Sabbath, Led Zeppelin e Deep Purple foram os principais responsáveis por conceber algo nesse estilo. Se você discorda, o que me diz sobre “Child in Time” (Deep Purple), “Kashmir” (Led Zeppelin) ou “Megalomania” (Black Sabbath), isso só para citar alguns. Não são essas canções exatamente pequenas suítes progressivas complementadas pela dose hardiana que consagrou os monstros da Santíssima Trindade citados?
Pois na Alemanha do início da década de 70 a situação não era muito diferente. O problema era que nesse país, algo estava muito além. Berlin, principal cidade alemã, estava rodeada de traficantes de drogas pesadas, prostitutas e sujeira, que se propagaram em uma Alemanha pós-Guerra, divida em Alemanha Oriental e Ocidental, e com uma enorme dificuldade de reconstruir a vida de seu povo, e principalmente, de re-estabelecer a sociedade na sua nação. Isso evoluiu fortemente durante a década de 70, tendo como consequência, uma enorme quantidade de jovens, adolescentes e crianças que tiveram o contato com as drogas e perderam suas vidas, como retratado (e muito bem) no famoso filme “Christiane F., Wir Kinden vom Bahnhof Zoo” de 1981 (no Brasil, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída).
Nesse cenário decadente, com a Alemanha saindo do fundo do poço, alguns jovens buscaram no rock a solução para uma vida melhor. O Scorpions é o melhor exemplo de como esses jovens conseguiram chegar ao auge, nascendo nessa efervescente cena de drogas e prostituição. Porém, muitos grupos não tiveram a sorte que os irmãos Schenker, Kalus Meine e cia., como foi o caso dos membros do Night Sun.
Suas origens vêm de um grupo de jazz que fez relativo sucesso na Alemanha durante os anos 60, o Take Five. Esse grupo era formado por Knut Rössler (órgão, piano, trompete, fagote, flauta e trombone), Werner Stephan (vocais), Edmund Seiboth (trompete), Hans Brandeis (guitarras, vocais), Torsten Herzog “Duke” (baixo, vocais) e Karl-Heinz Weber (bateria), e conquistaram seu espaço principalmente no sudoeste da Alemanha, em uma região conhecida como Rhine-Neckar.
Depois de algum tempo, o Take Five separou-se, mas sua sonoridade influenciou diretamente o futuro de Rössler, que se apaixonou pelo jazz e decidiu investir no estilo. Enquanto isso, Weber, Stephan e Duke fundaram o Kin Ping Meh, que se consagrou na Alemanha através de álbuns como Kin Ping Meh (1971) e principalmente, III(1973). Voltando à saga de Rössler, sua ideia de ampliar os horizontes jazzísticos barrou quando passou a ouvir os novos sons da Inglaterra. Cream, Led Zeppelin e Deep Purple foram as principais portas de entradas de Rössler no hard rock, e assim, começou a se formar uma nova ideia na genial cabeça do tecladista: a de misturar jazz com rock pesado.
Rössler fundou o Night Sun Mournin’ em 1970, consistindo de um grupo no qual passaram diversos músicos, e dicifilmente chegou em uma formação fixa. Um ano depois, o nome mudou apenas para Night Sun, tendo na formação além de Rössler, Walter Kirchgassner (guitarras), Bruno Schaab (voz, baixo) e Ulrich Staudt (bateria). Sua inédita sonoridade chocou a região da Rhine-Neckar, e principalmente, aos fãs do Take Five. As linhas dos metais de Rössler, misturadas às distorções de Schaab e Kirchgassner, eram um pequeno veneno sonoro na veia do ouvinte, que depois de ouvir as canções, não podia segurar o debatimento com tamanha força das canções do grupo.
O único álbum do Night Sun
Não demorou para que o selo Zebra (responsável também pelos discos do Kin Ping Meh, além de nomes como Abacus e Epitaph, e que pertencia a Polydor) entrasse em contato com o quarteto, levando-os para os estúdios em meados de 1972, onde registraram o fabuloso Mournin’.
“Plastic Shotgun” abre o LP, com o riff da guitarra seguido pela marcação de baixo e bateria, com os teclados seguindo as notas da guitarra. A intrincada introdução traz os vocais de Schaab, acompanhado pela quebradeira de teclados, guitarra, bateria e baixo. Um piano com batidas fortes faz uma espécie de ponte, deixando a guitarra sozinha, puxando o ritmo que leva aos solos sobrepostos, voltando à letra. Após gritar o nome da canção, a guitarra passa a fazer barulhos diversos, que terminam a canção entre vozes estranhas.
Um longo acorde de teclado abre “Crazy Woman”. Baixo, guitarra e bateria fazem o tema marcado, junto do órgão, e Schaab canta sobre a pesada levada do Night Sun, destacando os efeitos durante a virada de bateria na ponte central da canção. O órgão se sobressai executando um dançante solo na segunda parte da canção, enquanto as linhas de baixo de Schaab, junto com a guitarra e a bateria, evoluem para um veloz acompanhamento, similar ao que o Deep Purple costumava fazer em canções como “Speed King” e “Wring That Neck”, com Kirchgassner solando muito. Schaab volta à letra, e depois de mais uma curta sequência de viradas, os temas marcados retornam à introdução, que conclui a canção.
A épica “Got a Bone of My Own” surge com tons macabros e assustadores na guitarra. As sinistras notas do instrumento vão ocupando o recinto, e aos poucos, notas mais claras saem das seis cordas de Kirchgassner. A densa introdução é mesclada com notas de órgão e guitarra, estendendo-se por malucos três minutos, e então, a guitarra puxa o tema central, com o baixo acompanhando as notas, e a bateria fazendo a marcação. Mais Black Sabbath impossível. Desse tema, Kirchgassner sola notas rasgadas e marcadas, executando temas variados junto com baixo e bateria, e principalmente, controlado pelo peso das distorções.
O tema central é repetido, agora com a presença do órgão, e entre notas marcadas, Schaab passa a cantar. Os temas marcados entre baixo, bateria e guitarra, contrastam com o órgão, que passa a solar sobre outra bela levada do trio, e a comparação com o Deep Purple novamente é inevitável. Mais um tema marcado, e a letra continua, acompanhada pelo tema central e por intervenções da guitarra, que se prolongam até o fim da canção.
Para encerrar o lado A, “Slush Pan Man” surge com mais outro grande tema marcado entre guitarra, baixo, bateria e órgão. O peso sabbathiano de guitarra e baixo vai afundando o ouvinte em seu quarto, e a voz de Schaab ocupa-se de auxiliar os instrumentos nesse afundamento. Solos de guitarra surgem na ponte que leva para a segunda parte da letra, com mais temas marcados. Novos solos aparecem, porém com um andamento mais acelerado, sendo Kirchgassner o centro das atenções com suas notas rasgadas, repletas de bends e arpejos, assim como a linha de baixo envolvente de Schaab.
Contra-capa do CD
Uma assombrante voz abre o lado B com “Living with the Dying”, para o riff de guitarra, baixo, bateria e órgão trazer Schaab gritando o nome da canção. Um novo riff e a letra desenvolve-se, tendo um andamento quase marcial, com Schaab gritando muito. Os efeitos na bateria voltam a surgir durante o longo solo de Standt que surge no meio da canção, onde a sequência de batidas alterna-se entre rufadas nas caixas, viradas nos tons e uma marcação cronometrada do chimbal. Rossler aumenta a velocidade de seu solo, trazendo baixo, órgão e guitarra executando o riff inicial, e Kirchgassner passa a solar, dividindo o espaço com o órgão. A evolução dos solos se dá na mesma ordem, guitarra e órgão, para Schaab repetir a letra e encerrar a sinistra sensação que a canção passa ao ouvinte.
Os acordes do órgão de Rossler abre “Come Down”, que com um tema clássico, traz os vocais de Schaab acompanhado pelo violão e pelo órgão, construindo uma bonita balada com a adição do baixo e da bateria. Kirchgassner passa a fazer a melodia do vocal junto com o mesmo, e a balada continua, emocionante, chegando no solo de Rossler, com viradas no órgão e com bateria, guitarra e baixo fazendo o tema marcado. A canção transforma-se, ganhando peso, e a balada inicial agora é uma estonteante sessão de temas marcados entre baixo, órgão e bateria, com Schaab gritando a letra, levando a mais um bom solo de Kirchgassner, O órgão aparece com mais destaque sob o solo de guitarra, e então, novamente “Come Down” transforma-se, com violões e piano voltando ao tema inicial, para Schaab encerrar a letra com a guitarra dividindo a melodia dos vocais, para Kirchgassner soltar mais agudos em um belo solo de conclusão.
“Blind” volta aos temas purpleanos, em uma linha mais bluesística, destacando as sessões marcadas de baixo, guitarra, órgão e bateria, bem como o solo de Rossler no hammond, seguido pelo solo de Kirchgassner. Mais Deep Purple, impossível! Schaab retorna à letra, e mais um solo de Kirchgassner aparece, agora com mais virtuosismo, enquanto que o solo de Rossler no órgão é uma repetição de acordes em cima de uma mesma escala, concluindo com gritos e uma infernal barulheira da guitarra.
A mais rápida das canções de Mournin’ é “Nightmare”, com um ritmo veloz, também muito purpleano, mas com uma diferença nos vocais de Schaab, quase punk-rock (se bem que o punk ainda não existia como hoje o conhecemos) e também nas intervenções da guitarra. As linhas melódicas da guitarra, cercada pelos complicados temas de baixo, órgão e bateria, levam ao agitado solo de hammond, e então, a sequência é repetida até o encerramento da canção, com um crescendo dos intrumentos, um longo grito de Schaab e mais barulhos.
O LP encerra-se com “Don’t Start Flying”, a qual começa com um belíssimo solo de saxofone, tendo baixo, guitarra e bateria quebrando tudo ao fundo. A letra surge tendo o saxofone fazendo o riff e intervenções. As jazzísticas participações do saxofone, misturadas com o peso do baixo e da guitarra, são uma saborosa mistura. Os solos são divididos entre saxofone e guitarra, sempre com os dois instrumentos fazendo os temas entre os solos de forma muito bem trabalhada, e Schaab continua a letra, fechando o álbum com os temas marcados sendo interferidos pela guitarra de Kirchgassner.
Mournin’foi produzido por Konrad Plank (responsável por produzir material de grupos como Ash Ra e Kraftwerk), o que deu uma cara progressiva ao hard e pesado som do grupo. Após o lançamento de Mournin’, o grupo fez uma série de shows, mas a forte rigorosidade e o gênio de Rössler acabaram fazendo com que Schaab e Kirchgassner abandonassem o projeto ainda em 1972.
Johannes Vogt e Knut Rössler
Schaab acabou ingressando no Guru Guru, gravando o espetacular álbum Guru Guru (1973), um dos principais LPs do krautrock. Já Rössler dedicou-se a uma carreira solo e de músico de estúdio, participando de álbuns dos grupos Infinity & Alphonse Mouzon (Now – 1992) bem como gravando vários álbuns ao lado do violonista Johannes Vogt.
Enquanto ao Night Sun, acabou esquecido entre os grupos alemães, até que o selo Second Battle relançou Mournin’ na versão em CD, com formato digipack, e com os alemães virando mais um nome obscuro a ser descoberto pelos admiradores de boa música, principalmente fãs de Black Sabbath, Deep Purple e do chamado stoner rock em geral.
Muito bom, Mairon. Só espero que ninguém ache que o Night Sun é krautrock pelo fato da banda ser da Alemanha dos anos 70.
Nunca tinha ouvido falar nessa banda. Parabéns pelo resgate.