Discografias Comentadas: Arnaldo Baptista

Discografias Comentadas: Arnaldo Baptista

Por Mairon Machado

Esse mês de julho comemora os setenta e três anos de um dos principais músicos (se não o principal) que já nasceram em nosso país, Arnaldo Dias Baptista. Líder e fundador dos grupos Mutantes e Patrulha do Espaço, Arnaldo é um exímio multi-instrumentista, tocando com muita natureza baixo, órgão, piano, violão, bateria e até instrumentos de sopro, além de possuir uma voz marcante, consagrada por uma carreira repletas de histórias, as quais vão desde seus desafetos com os ex-colegas de Mutantes Rita Lee (ex-esposa) e Sérgio Dias (irmão caçula), passam pela carreira sozinho, fazendo shows na turnê Shining Alone, um grave período de recuperação pós-tragédia no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo e retornam a ativa com dois álbuns independentes, a colaboração do amigo Luiz Calanca e o retorno aos palcos com a serie de shows Sarau O Benedito.

Em sua longa carreira, Arnaldo lançou apenas quatro discos solo, e ainda dois discos com a seminal Patrulha do Espaço. Vamos à eles (e se você quiser conhecer os álbuns gravados por Arnaldo com o Mutantes, acesse aqui).


809ca0ab2ffa8febfffa99c7ab386faaLóki? [1974]

Acompanhado por Liminha (baixo) e Dinho Leme (bateria), além da participação especial de Rita Lee e com a colaboração do maestro Rogério Duprat nos arranjos, Arnaldo estreiou sua carreira solo com um álbum inigualável dentre a discografia padrão do rock nacional, quiça do rock mundial. Gravado de forma totalmente improvisada, em um único take e apenas com o overdub das orquestrações, nele Arnaldo despeja suas emoções e sentimentos contra Rita e Serginho, através de canções que marcaram para sempre a MPB, apresentando-se principalmente com o piano. Não à toa, Lóki? sempre é lembrado nas listas de melhores discos da história. Sua incapacidade de aceitar a separação com Rita aparecem em quase todo o álbum, através da comovente “Desculpe“, única canção a contar com o moog, e com uma sensacional linha de baixo, “Vou Me Afundar Na Lingerie”, uma leve balada com Arnaldo “fingindo” ter esquecido Rita, o que é dispensado na arrepiante “Te Amo Podes Crer”, aonde ouvimos o choro e lamento de Arnaldo do fundo de seu coração, “Será Que Eu Vou Virar Bolor?“, um rockaço a la Jerry Lee Lewis, e “É Fácil”, uma letra simples de apenas duas frases, mas com uma genialidade absurda. “Não Estou Nem Aí” faz a divisão entre os temas centrais, contendo um belo trabalho de Dinho, e sendo uma passagem reflexiva para Arnaldo seguir sua carreira. O afastamento prematuro do Mutantes, quando o grupo migrou para o rock progressivo e viveu em um período de retiro na Serra da Cantareira, é relembrado com a pérola “Uma Pessoa Só” (que havia sido gravada em 1973 pelo grupo no álbum O A E O Z, lançado somente vinte anos depois) e jogada de frente para o ventilador na canção que acabou dando nome ao álbum, o samba “Cê Tá Pensando Que Eu Sou Lóki?”. No meio do LP, Arnaldo demonstra seu virtuosismo e inspiração na música clássica em “Honky Tonky (Patrulha do Espaço)”, peça solo ao piano com alta capacidade de interpretação. E finalmente, uma das melhores canção da carreira de Arnaldo, “Navegar de Novo“, com o músico atirando sua raiva para a sociedade cantando dramaticamente acompanhado apenas pelo piano. Incompreendido e um fracasso comercial quando de seu lançamento, hoje é venerado por dez entre dez pessoas que o ouvem. Certamente, daqui há cem anos, quando forem citados os melhores discos de todos os tempos na música brasileira, Lóki? estará entre eles.

Após Lóki?, Arnaldo seguiu sua carreira fazendo shows espassadamente, e inclusive chegou a ser convidado para reintegrar o Mutantes (convite esse que acabou apenas com Arnaldo participando como músico solo no intervalo das longas apresentações do grupo). Em 1977, fundou o Patrulha do Espaço, grupo que revelou o talentosíssimo baterista Rolando Castelo Jr., e fez shows pelo Brasil inteiro, mas o próprio Arnaldo se demitiu do grupo no ano seguinte, e peregrinou sozinho pelos palcos principalmente de São Paulo, apresentando o show Shining Alone e tentando buscar uma gravadora para apoiá-lo. Aqui surge a figura importante de Luiz Calanca.


01_arnaldoSingin’ Alone [1982]

Como seu único disco havia sido um fracasso comercial, ninguém se atrevia para realizar a façanha de produzir um álbum seu, e para piorar, ele mergulhava cada vez mais em drogas pesadas, principalmente LSD, que o levaram por diversas vezes a ser internado no hospital citado acima. Mas, no final de 1981, entra nos estúdios Abertura e, a la Paul McCartney nos primeiros discos solo, grava todos os instrumentos de seu segundo álbum, Singin’ Alone. Lançado no ano seguinte pelo selo Baratos Afins, de Luiz Calanca, ele é tão bom quanto Lóki?, e contém mais joias espetaculares do cancioneiro Arnaldiano, tentando provar a si mesmo que ainda tinha conhecimentos e talentos musicais que o fariam a voltar a ativa, e que assim como seu antecessor, foram gravadas quase que totalmente em um único take para cada instrumento. O interessante é que temos muitas canções com letra em inglês, cantadas gravemente, e uma vasta mistura de estilos. “Corta Jaca” parece aquelas músicas feitas por duplas sertanejas do interior paulista, com um belo trabalho de Arnaldo tanto no piano como nos vocais, também destacados em “Jesus Come Back To Earth” (em uma linha muito similar a “Será Que Eu Vou Virar Bolor?”) e “O Sol” (reconhecida posteriormente como “Sunshine”). “Hoje de Manhã Eu Acordei”, “”Sitting On The Road Side” e “Ciborg” são ótimos rock and rolls, e “Bomba H Sobre São Paulo” é uma dramática mistura de sons, para “Young Blood” e “Train” encerrar o álbum deixando um gosto de quero mais. Em tempo, Arnaldo ainda nos brinda com o seu inglês na linda balada desabafo “I Feel In Love One Day”, a experimental “Cowboy”, além da viajante  “Coming Through The Waves Of Science”, com muito peso e até a citação de “Let’s Spend The Night Together”, dos Stones.  Vale a pena ressaltar que grande parte das canções são da época da Patrulha, e algumas outras foram compostas em pequenas viagens de Arnaldo entre São Paulo e a cidade de Catanduva, sendo que uma delas, “Corta Jaca” foi composta quando essa viagem foi feita a pé!

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Arnaldo e Lucinha Barbosa

Pouco antes do lançamento de Singin’ Alone, ocorreu o acidente que mudou a vida de Arnaldo. Após uma série de crises, e sofrendo com a depressão, o músico foi internado no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, de onde atirou-se do terceiro andar do setor de psiquiatria. Segundo o próprio, ele atirou-se simplesmente por que não queria passar a virada de ano sendo tratado como louco, jogando o jogo mais alto que existe: a vida. De qualquer forma, Arnaldo ficou em coma durante três meses, sendo liberado em maio de 1982 para seguir um longo tratamento de recuperação ao lado de alguns médicos e de sua nova esposa, Lucinha Barbosa, uma fã antiga que passou a cuidá-lo como carinho, dando origem a uma linda história de amor que continua até os dias de hoje.

Essa foi a fase mais complicada de Arnaldo durante toda sua carreira, já que a queda afetou gravemente os movimentos e também a fala de Arnaldo, mas felizmente não afetando sua genialidade. Suzana Braga (que havia participado como backing vocals em algumas canções de Singin’ Alone), procurou Luiz Calanca, e enquanto Arnaldo estava em coma, conseguiu assinar o contrato para o lançamento do álbum, que se tornou o primeiro desse importante selo nacional.


Arnaldo - disco voador 1987Disco Voador [1987]

Arnaldo seguiu em constante recuperação, investindo agora na pintura e também em algumas esculturas. E novamente com a ajuda de Calanca, lançou seu terceiro e complexo álbum em 1987. Para Arnaldo, um álbum de terapia, enviado para Calanca através de um k7 gravado em dois canais na sua própria casa, em Juiz de Fora. Para os fãs, um disco extremamente confuso e de difícil audição. Um Arnaldo triste e com diversos problemas de fala registrou algumas canções acompanhados apenas de um sintetizador, que fazia as notas do órgão e também o acompanhamento percussivo. Como advertência, o álbum traz um anúncio de que somente os fãs deveriam comprar o disco, o qual foi lançado em uma pequena tiragem de cópias. Temos algumas regravações para “Balada do Louco”, uma inglês (“Crazy – Ones Ballad”) e outra em francês (“Le Foulle Balad”) e “Jesus Come Back To Earth” (agora chamada “Jesus Volte A Terra”). A língua britânica também é utilizada para interpretar “OVNI” e “I Wanna To Take Off Every Morning” (versão para “Não Estou Nem Aí”). No mais, temos um esforçado Arnaldo tentando voltar a cantar, e mostrando sua genialidade através de letras interessantes como “Eu” e “Traduções”. É admirável ouvi-lo tocando teclados em “Rodas“, e comovente sua declaração de amor para Lucinha Barbosa em “Maria Lúcia“. Como o disco já anuncia, somente fãs reais compreendem o que está nesse disco no mínimo curioso, e de extremo valor para  a carreira de Arnaldo.


maxresdefaultO Elo Perdido [1988]

No ano seguinte, o selo Vinil Urbano resgatou a obra de Arnaldo com a Patrulha, e lançou mais um álbum essencial. Arnaldo e a Patrulha estão afiadíssimos, com uma performance impecável e brilhante, soltando a mão em hards diretos, que em nada lembram Mutantes ou a fase Lóki?. Aqui temos algumas canções que apareceram em Singin’ Alone, interpretadas com um grupo extremamente competente, expressadas em “Corta Jaca” e “Trem”, misturando country com música clássica e hard rock, além de Arnaldo soltando a voz como nunca, sem desafinar e mesmo assim, exalando emoção. “Emergindo da Ciência” é a versão em português para “Coming Through The Waves Of Science”, com toques de progressivo, e “Raio de Sol” é a canção mais rock and roll de todo o LP, bem diferente do que ouvimos no segundo álbum do cantor. Também temos novidades, como a pesada “Sexy Sua” (regravada por Lobão), o bluesão “Um Pouco Assustador” e mais uma balada emocionante, “Fique Aqui Comigo“. Abrindo O Elo Perdido, aquela que considero a melhor canção da carreira de Arnaldo, “Sunshine“, uma autobiografia sobre seu período pós-Mutantes, que contei um pouco de sua história aqui. Uma pena que o disco vendeu pouco, mas trouxe para os brasileiros (e os fãs mundiais) o talento de uma banda poderosa e de importância extrema para nosso país, além de Arnaldo com um vigor jamais atingido posteriormente, talvez na sua melhor fase como músico.

capa-420x420Ainda em 1988 foi lançado o excelente álbum “Faremos Uma Noitada Excelente …”, trazendo uma apresentação de Arnaldo com a Patrulha do Espaço no Teatro São Pedro de São Paulo, na data de 13 de maio de 1978. Apesar da mixagem não ser das melhores, a parte musical é perfeita, com versões pesadas e muito bem tocadas para “Emergindo da Ciência”, “Um Pouco Assustador“, “I Feel In Love One Day” e “Hoje de Manhã Eu Acordei”. Destaque para o longo solo de bateria feito por Rolando e para a peça clássica ao piano “Arnaldo Soliszta”.

No ano seguinte veio o tributo Sanguinho Novo, com artistas como Sepultura, Ratos de Porão, Atahualpa Y Us Panquis e Paulo Miklos recriando canções compostas por Arnaldo, seja em carreira solo, seja com a Patrulha do Espaço, seja com o Mutantes.

Na década de 90, o nome Arnaldo Baptista ganhou força internacionalmente, graças aos fãs famosos que não pararam de enaltecer a obra do músico (e consequentemente dos Mutantes). Dentre os principais nomes, Kurt Cobain (Nirvana), David Byrne (Talking Heads) e Sean Lennon (filho de John Lennon) foram os principais. O primeiro apresentou Arnaldo para a geração grunge, enquanto o segundo fez questão de conhecer pessoalmente o músico. O último trouxe novamente Arnaldo aos palcos durante a terceira edição do Rock in Rio, em 2001. A partir dali, uma nova fase começava.


619SMNB8XSLLet It Bed [2004]

Passados alguns anos sem notícias de Arnaldo, eis que no início deste século a lenda retorna a ativa, dessa vez com a colaboração de Lobão e John Ulhoa (Pato Fu). Apesar de não trazer um material de tão alta qualidade quanto seus antecessores, é um disco muito bem elaborado, principalmente pelos arranjos. São canções relativamente curtas, que vão do jazz de “Everybody Thinks I’m Crazy”, a balada acústica “Nobody Knows”, a colagens proto-funk em “To Burn Or Not To Burn“. Algumas faixas são puro experimentalismo, como “Gurum Gudum” e “LSD”, enquanto outras são reveladas principalmente pelos arranjos, no caso “Bailarina”. “Deve Ser Amor” e “Encantamento” mostram o virtuosismo conservado de Arnaldo ao piano, mesclado com modernidades que caíram bem na concepção final da faixa, ainda mais com a citação de “Mutantes E Seus Cometas No País dos Bauretz” feita pelo piano na primeira, e a delirante guitarra alucinógena na segunda. Existe um reaproveitamento de canções da época da Patrulha do Espaço e da fase Shining Alone, mas nunca gravadas oficialmente, no caso “Imagino”, aproveitando a letra da sensacional “Imagino A Minha Morte”, e “Ai Garupa”, com a letra da canção de mesmo nome e a participação vocal de Lucinha, além da vinheta “Carrossel”, cujo tema foi utilizado no final de “Emergindo da Ciência” no álbum “Faremos Uma Noitada Excelente …”. Os melhores momentos ficam por conta do encerramento, com uma versão ao vivo de “Tacape” gravada durante a turnê Shining Alone em 1981 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA) e “Cacilda“, utilizando uma gravação vocal/piano de Arnaldo do final da década de 70, e com um belo arranjo de cordas, e cujo show completo foi lançado em streaming em 2013.

arnaldo_250514Em 2006, comemorando os 40 anos do tropicalismo, Arnaldo foi convidado para retornar ao Mutantes, ao lado de Sérgio Dias (guitarra, vocais), Dinho Leme (bateria) e Zélia Duncan (vocais), além de uma mega banda de acompanhamento.

O show foi registrado no álbum Live at the Barbican Center (2008), que até o momento, é o último disco a conter gravações com Arnaldo. O músico deixou os Mutantes no início de 2010, e em 2012, retornou aos palcos com a turnê Sarau O Benedito. Se virá mais uma gravação nos moldes de Let It Bed, não se sabe.

Porém, o imenso legado deixado por Arnaldo até o presente momento é o suficiente para que o mundo respeite e venere esse grandioso músico. A Consultoria do Rock deixa os parabéns para Arnaldo, desejando muita saúde e paz, pois a genialidade desse ser de outro planeta irá permanecer eternamente.

2 comentários sobre “Discografias Comentadas: Arnaldo Baptista

  1. Loki é um clássico da música mundial. Um álbum confessional, em que um gênio demonstra todo seu sentimento em música e letra. É impactante.

    1. Valeu Marcos. Concordo totalmente. Para mim foi um impacto imenso quando ouvi pela primeira vez. Abraços

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