Sabicas, Joe Beck, Tony Levin e o marco zero do rock flamenco

Por Marco Gaspari
Esta matéria seria uma ótima desculpa para um tratado sobre o rock flamenco, mas não tenho nem a pretensão e muito menos o conhecimento para tal empreitada. Apesar de ser descendente de espanhóis por parte de mãe e minha esposa ter alguma ascendência cigana, ninguém aqui em casa costuma tocar castanholas ou sapatear sobre a mesa. Posso afirmar, no entanto, que a música flamenca não tem uma origem conhecida. Ela é geralmente creditada aos ciganos, mas suas raízes podem ser encontradas também na música judaica, cristã e árabe.
Os próprios ciganos têm uma origem controversa. As fontes mais confiáveis estabelecem que lá pelo século IX, por razões desconhecidas, milhares de habitantes do noroeste da Índia começaram a migrar para o ocidente. Ao chegarem à Pérsia, uma parte se estabeleceu e outra continuou uma peregrinação que passou pela Palestina, Egito, Líbia, Tunísia, Marrocos e, finalmente, após cruzar o estreito de Gibraltar, alcançou a Espanha, na região da Andaluzia. Nessa época já eram conhecidos como “gypsies”, um nome derivado de Egypt, pois a cor escura de sua pele fez os europeus acreditarem que eles seriam originários das terras quentes do Egito.


Agustín Castellón Campos, vulgo Sabicas


Pois é, mas acontece que nessa região da Espanha coexistiram por muito tempo várias culturas distintas. Além dos ciganos, havia (como já foi citado) os católicos, os judeus e os muçulmanos. E desse caldeirão, mantido em fogo brando até o começo do século XIX, uma música misteriosa e expressiva foi finalmente servida aos europeus. Hoje ela é conhecida como Flamenco.

Bom, vou poupá-los de toda a historinha sobre o desenvolvimento desse tipo de melodia durante o século XIX e a primeira metade do século XX. A partir dos anos 50, no entanto, ela floresceu o suficiente para ser considerada hoje a música étnica mais popular do mundo. Uma música assim fatalmente seria absorvida por outros estilos musicais, sendo o jazz um dos gêneros que mais se serviram dela no final da década de 50 e começo dos 60. Miles Davis, Gil Evans, John Coltrane e Charles Mingus são alguns músicos de jazz que flertaram com o flamenco na época.
Um músico espanhol muito ligado a esses gênios do jazz era Agustín Castellón Campos, um prodígio da guitarra flamenca desde criança. Sabicas, esse era seu apelido (devido à sua gulodice infantil por favas, ou habas – ou habicas, seu diminutivo), nasceu com sangue cigano na cidade espanhola de Pamplona em 1912. Em meados da década de 30 já acompanhava a maioria dos grandes intérpretes do país e escolheu a cantora Carmen Amaya como parceira para uma excursão pela América do Sul, na realidade um pretexto para escapar da Guerra Civil Espanhola e se exilar da Espanha do ditador Franco. Menos de 20 anos depois já estava em Nova York dando recitais de guitarra solo e sua técnica impecável e incrível habilidade na execução de picados e arpejos ligeiros logo conquistaram a cena jazzista local. Aliás, foi graças ao seu prestígio junto aos músicos de jazz que ele começou a gravar e ter seus discos lançados no mundo inteiro, chegando a influenciar toda uma nova geração de músicos flamencos, entre eles Paco de Lucia, que coloca Sabicas em um verdadeiro pedestal.
Capa e contracapa de Rock Encounter

Em 1966, Sabicas se uniu ao guitarrista Joe Beck na gravação do disco Rock Encounter. Beck, americano da Filadélfia, tinha uma forte formação jazzista e chegou a tocar com todas essas figurinhas carimbadas. Como músico de estúdio tocou depois para Laura Nyro, Tim Hardin, James Brown, Tom Jobim e chegou a produzir vários álbuns de rock a partir da década de 70. Além disso, tinha um faro ímpar para descobrir e apoiar novos talentos. Nesse LP que gravou com Sabicas, Joe Beck reuniu uma banda com Donald Mac Donald na bateria, Warren Bernhardt nos teclados e promoveu a estreia em disco do jovem (então com 22 anos) baixista Tony Levin, que mais tarde se consagraria como o coração pulsante da encarnação oitentista do King Crimson.


Joe Beck
Rock Encounter é mais que um simples disco de fusion, já que é considerada a primeira experiência bem acabada da fusão do rock com a música flamenca. Apesar de não ser muito bem avaliado pelos próprios músicos que participaram de sua gravação (Sabicas, por exemplo, disse mais tarde que não gostava nem de rock nem de jazz e que só gravou o LP porque seu irmão queria que ele se aventurasse em novos campos para vender mais) e não ter tido quase nenhum reconhecimento na época, o disco é uma fantástica sucessão de interpretações magistrais em ambos estilos, semeando de forma estupenda um gênero que daria seus principais frutos nos anos 70, seja no jazz rock de Chick Corea, Paco de Lucía, John McLaughlin, Al DiMeola e Larry Corryel, seja no progressivo de bandas como Carmen, Triana, Guadalquivir, Alameda e Imán Califato Independiente, só para citar algumas.
Tony Levin
O disco de Sabicas e Joe Beck envereda não só pelo jazz e flamenco. A guitarra ácida de Beck abusa dos wha-whas psicodélicos e alguns temas podem ser considerados precursores até mesmo do rock progressivo. Tony Levin é outra grande surpresa, revelando uma maturidade impressionante para um jovem que deveria estar mais é intimidado pela presença de pares tão ilustres. Longe disso, transforma seu baixo na agulha que costura toda a genialidade acústica e elétrica dos guitarristas. Um grande LP, que a Espanha só veio a conhecer quando foi lançado no país em 1970 e que o resto do planeta teve que esperar pelo CD para ouvi-lo em sua exuberante plenitude e resgatar toda a sua importância histórica.
Em 1971, Sabicas repetiria a dose (desta vez gravando com músicos de estúdio de Los Angeles) no LP The Soul of Flamenco and the Essence of Rock, outro artefato insólito deste incrível músico, talvez o primeiro concertista clássico renomado a tentar seriamente fundir sua arte com o jovem rock ‘n’ roll.

Track List de Rock Encounter:

4. Zambra
5. Handclaps

7 comentários sobre “Sabicas, Joe Beck, Tony Levin e o marco zero do rock flamenco

  1. Ótimo texto, e escolheu um tema realmente muito interessante pra tratar, Gaspari! Eu nem sabia que o Levin era assim tão antigo, mas é pq não acompanho nem um pouco o que esse cara fez em vida. Há algum tempo eu peguei vários discos de música cigana de várias modalidades, e não só espanhola, mas ainda não conferi. Vou incluir esse na lista. Parabéns!

  2. Bela matéria, Gaspa! Eu também não sabia que a carreira de Tony Levin remetia há tanto tempo assim, ainda mais com ele (um dos ícones do baixo progressivo) já havia se aventurado pelos caminhos do Flamenco…

    Flamenco que aliás eu conheço muito pouco, mais por "culpa" de Paco de Lucia, um dos meus violonistas preferidos no mundo da música instrumental!

    Agradeço pela dica de mais um disco que promete ser imperdível!

  3. Valeu, amiguinhos!
    A Espanha talvez não tenha desenvolvido uma cena roqueira tão interessante quanto a de outros países da Europa por causa justamente da ditadura franquista. Os artistas eram realmente “incentivados” a não incomodar muito. Pode ter sido isso o que tornou importante o disco da banda Carmen, uma mistura de americanos e ingleses, liderada pelo guitarrista de flamenco americano David Allen (não confundir com o Daevid do Gong). Fandangos in Space, lançado em 73 na Inglaterra, apresentou o prog flamenco ao mundo e os espanhóis tiveram que correr atrás. Daí a importância dos dois trabalhos pioneiros do Sabicas como resgate do orgulho espanhol.
    Mas quem estiver com um pé atrás para ouvir o Rock Encounter achando que vai se entupir de castanholas e violões a la Paco de Lucia, está perdendo a oportunidade de ouvir um disco de rock psicodélico bem visceral e original.

  4. Ouvi as cancoes disponibilizadas e me encantei. O Sabicas era um baita violonista, e a sonoridade desse album eh modernissima para sua epoca. O termulo de zambra é algo.Gaspa, m ecorrige se eu estiver errado,mas se o paco de lucia coloca o sabicas no pedestal, o sabicas tinha como influencia principal o sensacional django renhardt, estou certo?

    Dentre os musicos de flamenco mais conhecidos, o que eu mais admiro eh Manitas del Plata. A mao direita do homem eh uma animalesca avalanche de acordes. Paco de Lucia perto dele é lambari de tao fraco. O proprio Django tocava muito, e na mesma epoca do Manitas, mas o que o Manitas fazia ao vivo (com as espanholas tocando castanhola e tudo mais) era sensacional. Oucam o live at carnegie hall de 54 e depois comentem se for o caso.
    Tenho fores ligacoes com a musica flamenca e o violao classico, e sempre q posso, exibo minhas notas para minha colecao de discos

    Belissimo texto para um belissimo disco q ja entrou para minha watch list do ebay (ainda com um preco beeeeeeeeeeeeem salgado)

  5. Oi Mairon
    Pelas informações disponíveis na net, a primeira influência comprovada de Sabicas foi Ramón Montoya, com quem ele conviveu na infância e juventude já que o mestre era parente de sua mãe. Nos anos 30, começou a moldar um estilo próprio ao acompanhar cantores masculinos. Não tocam no nome de Django nem de Manitas, mas imagino que todo guitarrista flamenco, principalmente cigano de origem, devia admirar o principe dos guitaristas ciganos. Tocar como o Django é se obrigar a perder algumas coisas, como alguns dedos das mãos, hehe… Manitas por exemplo esperou 10 anos da morte de Django para começar a gravar. Isso é que é respeito.

  6. Interessante, mas não gosto de misturar bateria e guitarra com flamenco. Em Granada fui a um show onde um pianista se apresentava com um grupo normal e ainda achei bizarro. Não consigo gostar nem do Vicente Amigo. Gostava muito do Paco Peña, mas o Sabicas é mais legal ainda. Tenho um CD do Manitas e nem gosto.

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