Pesniary: da Bielorrússia com amor.

Pesniary: da Bielorrússia com amor.



Por Marco Gaspari

Contrariando aqueles que acham que a Lituânia é a Meca dos proggers que buscam nas obscuridades progressivas uma forma de auto-estima, faz tempo que eu alimento meu ego garimpando também os discos de grupos de outros países da ex-Cortina de Ferro. E prefiro o progressivo porque nenhum outro estilo dentro do rock soube acolher tão bem a tradição folclórica e as raízes sonoras dos países que ele, na falta de uma expressão melhor, invadiu. Desculpe se faço os Stalin da vida e todo o politburo do Partido Comunista da ex-União Soviética revirar nos devidos caixões, mas o rock talvez tenha sido o mais bem sucedido (e um dos mais temidos) aliciador capitalista da juventude vermelha do pós-guerra. Basta saber que ele também estava incluído na pauta de aberturas que Aleksander Dubcek queria promover na Tchecoslováquia com a chamada Primavera de Praga. E deu no que deu.
A Bielorrússia (ou Belarus), um país vizinho da Lituânia, tem 80% do seu território coberto por florestas e seus habitantes se concentram nas áreas urbanas em volta da capital Minsk e das outras capitais das divisões regionais do país. Seu nome deriva da expressão Rússia Branca, que descrevia a área da Europa Oriental coberta por neve e povoada por povos eslavos. O homem moderno já andava por lá entre 5000 e 2000 anos A.C. Isso nos dá uma ideia do tamanho de sua história e da riqueza de suas tradições. Essas, datam dos tempos medievais e como o país esteve sempre estrategicamente localizado na junção das rotas comerciais que interligavam a Europa Oriental e a Ocidental, sendo alvo constante das políticas expansionistas de seus vizinhos, os habitantes da Bielorrússia fizeram da preservação de sua língua e de suas tradições a principal marca de sua identidade cultural.
Vladimir Mulyavin
Pode-se dizer que o rock em Belarus começou em 1968 em torno da figura talentosa e carismática de Vladimir Mulyavin, um músico de formação clássica e entusiasta do folclore de seu país. Ele já participava de festivais em 1957 e colecionou vários títulos em sua longa carreira (morreu em 2003, vítima de um acidente de trânsito), como o de “Trabalhador Honrado da Cultura da Polônia”, em 1980, até o de “Artista do Povo da URSS”, em 1991, o maior prêmio concedido pela Mãe Rússia aos seus filhos desvairados.
Desvairado pode não ser uma palavra feliz ou justa para descrever Vladimir, mas se encaixa perfeitamente na ideia que o governo comunista fazia das pessoas que se deixavam influenciar pela crescente popularidade do rock ocidental nos países soviéticos durante os anos 60. Tanto que o governo russo tentou controlar de perto cada aspecto da produção de música popular, do estilo musical e conteúdo das letras até a forma dos artistas se apresentarem no palco e o comportamento do público. Também tratou de incentivar a criação de conjuntos vocais e instrumentais que pautassem suas mensagens de um conteúdo não político e as executassem de forma comportada. Foi nesse clima de censura que o público de Belarus conheceu um desses conjuntos, o PESNIARY, comandado pelo nosso Vladimir Mulyavin, um grupo de músicos formados que não cantava em russo, mas na língua de seu país e que, apesar disso, soube ser palatável aos censores de plantão.
Deixando de lado esses aspectos políticos, mas fundamentais para entender o som do Pesniary, vamos nos concentrar na banda: entre 1967 e 68, Mulyavin  formou o conjunto Liavony (Os Bufões) para extravasar seu entusiasmo pela música folk e seu crescente amor pelos Beatles. Nessa época tocavam versões de “Yesterday” e “Ob-La-Di Ob-La-Dá” com letras vertidas para o russo.  No ano seguinte, porém, o músico trata de levar mais além o trabalho despretensioso do grupo e decide mudar seu nome para Pesniary (Os Contadores de Histórias), adaptando as tristes e delicadas canções do folclore de Belarus para instrumentos modernos. O resultado é absolutamente único, um amálgama excêntrico de vários instrumentos (haviam nove elementos em sua formação) e de incríveis trabalhos vocais. Não era apenas criar arranjos roqueiros para músicas folk, mas desenvolver e enriquecer essas músicas sem abdicar de sua alma e paixão originais.  De uma maneira particularmente russa, eles foram psicodélicos em seus primeiros dias, amadurecendo e crescendo em complexidade até desenvolver trabalhos conceituais na melhor tradição progressiva lá pela segunda metade dos anos 70.
Pena que não é fácil encontrar informações sobre o Pesniary em sites oficiais e de fã-clubes que não sejam na língua russa. E existem vários, pois a banda foi uma das mais populares da União Soviética, vendendo aos milhões cada LP e single lançados. Fosse em qualquer país capitalista e seus músicos estariam milionários, mas na Rússia recebiam apenas uma ajuda de custo da única gravadora do país, a Melodyia, que, por outro lado, cobria todos os custos de gravação e lançamento e cuidava da promoção. No auge de sua popularidade, chegaram a fazer até quatro shows dia sim, dia não e, em 1976, realizaram uma grande e bem sucedida excursão pelo sul dos Estados Unidos e se apresentaram no Midem, em Cannes.
Bom, como o assunto tratado aqui é rock progressivo, vamos passar direto para o quarto disco do Pesniary, lançado em 1978 e cujo nome em inglês é Byelorussian Folk Songs. A música que interessa aqui é a que abre o LP, “Perapyolachka (A Codorniz)”. Não tenho ideia do que diz a letra, mas sei que é uma metáfora sobre a difícil condição feminina nos tempos passados. A melodia tormentosa e os vocais intensos e sofridos sugerem uma tristeza de fazer qualquer cossaco depressivo ficar uma semana de cama, em posição fetal. As vocalizações são no mínimo exóticas para os ouvidos ocidentais, e mesmo aqueles que já estão fartos das refeições diárias de Close to the Edge e outras iguarias do cardápio prog inglês, vão estranhar o arranjo excêntrico de flautas, violinos e outros instrumentos que eu nem sei como dizer o nome em português. O resultado final, porém, é marcante, como se a cápsula do toca discos transportasse o ouvinte para um universo sonoro totalmente desconhecido. Uma viagem de pouco mais de dez minutos de duração, mas com a sensação de uma aventura completa. O restante do disco também tem vários climas progressivos, com flautas, violinos, órgão, piano forte e até mesmo um som que lembra o Theremin, mas na realidade é apenas a voz de um dos cantores.
Milyavin, na segunda metade dos anos 70, também se rendeu aos álbuns conceituais. Passou a estudar a obra do poeta e escritor Ivan Daminikavich Lutsevich,  que escrevia sob o pseudônimo de Yanka Kupala, considerado um dos maiores escritores belarus do século XX, e compôs duas óperas-rock baseadas em seus poemas. A primeira delas, Pesnia pra Doliu (A Canção do Destino), de 1976, teve algumas apresentações ao vivo e nunca foi lançado em LP. Eu ouvi no Youtube e achei muito Broadway para o meu gosto. Já Gusliar (O Tocador de Gusla, um instrumento de cordas típico da região dos Balcãs), lançada em LP em 1979 e baseada no poema “Kurgan”,  e também na música do compositor Igor Luchenok, é uma das mais incríveis experiências progressivas que meus ouvidos já viveram.
Andei lendo por aí algumas comparações entre o som de Gusliar e os trabalhos de grupos prog italianos como Banco del Mutuo Soccorso, Premiata Forneria Marconi, Bloco Mentalle e Alusa Fallax. Até pitadas de Ennio Morricone e Jesus Christ Superstar enfiaram no meio. Bobagem. Algumas pessoas parecem necessitar de pontos de referência confortáveis para compreender qualquer coisa estranha ou inexplicável. Como se cortar em tiras a foto de um boi ajudasse a explicar melhor a sensação de comer um bom bife.  E tem também o fato de que eu duvido que Vladimir conhecesse essas bandas na época. Gusliar é um épico ambicioso e soa muito original. 

Do que eu entendi do enredo, o tocador de gusla é convidado a tocar no casamento de uma princesa e não se contém enquanto não denuncia o estado de extrema pobreza em que vive o povo. O rei então o condena a ser enterrado vivo. Mais tarde, sobre o túmulo do músico nasce um carvalho cujas folhas jovens, sopradas ao vento, vão contando a história do tocador de gusla. São quase trinta e sete minutos de tensão dividida em dezenas de texturas. Temos piano interagindo com metais, bateria duelando com o baixo, moog em vôos kamikaze, vocais em acapela e corais suntuosos. O som é assombroso, por vezes étnico, no limite da opressão, mas meticulosamente construído emocional e melodicamente. Não me arrisco a ir além nesta descrição porque adjetivo nenhum é capaz de fazer justiça à surpresa que é ouvir Gusliar pela primeira vez. E tem razão quem acha que eu exagero. Sou completamente apaixonado por esse disco.

O Pesniary fez ainda mais sucesso nos anos 80 e 90, mas seu som ganhou roupagens mais pop. Teve inúmeras trocas em sua formação e permaneceu vivo mesmo após a morte trágica de seu líder. Hoje existem três Pesniary diferentes em atividade na Bielorrússia. É que o legado de Vladimir Mulyavin é muito grande para ser carregado sozinho.
As músicas do Pesniary tratadas no texto:
Perapyolachka
Gusliar” (completo) 
Alguns vídeos do começo da carreira do Pesniary
1971 
1971 
1971 

6 comentários sobre “Pesniary: da Bielorrússia com amor.

  1. Que loucura essa Gusliar. Não conhecia essa maravilha. Na realidade, da Bielorússia nunca tinha ouvido nada até o momento, mas conheço algumas bandas da URSS, Hungria, Tchecoslováquia e Romênia. Muito obrigado por mais um belíssimo texto Marco, categoria de sobra (coisa que anda faltando na nossa Seleção)

  2. Pois é, Mairon, são muitas as boas bandas do leste europeu, algumas delas ótimas. Mas nenhuma me impressionou tanto quanto o Pesniary. Eu já conhecia o Byelorrusian Folk Songs desde os anos 80, mas o Gusliar descobri há uns 2 anos, depois que consegui finalmente a tradução do raio do nome da banda, hehe… O trabalho vocal deles eu nunca ouvi igual. Enfim, virei fã. E é ótimo poder escrever sobre eles. Talvez faça algumas pessoas perderem um pouco o preconceito e se aventurarem a ouvir essas coisas que fogem do padrão progressivo europeu, principalmente o inglês.

  3. Pois Marco, não só o progressivo, mas o Jazz da cortina de ferro tb tem muito material bem melhor que o tradicional. O problema é conhecer essas bandas. Do progressivo, eu AMO MUITO TUDO ISSO (propaganda básica) a discografia do SBB banda polonesa que tinha um som único, e que muitos tinham necessidade de comparar com ELP ou Yes, mas na prática, não tinha nada a ver, e para mim é beeeeeeeeeeeem melhor que ELP (que Yes não pq é dificil achar algo melhor no progressivo que essa banda). Outra banda que eu admiro muito dessa região é o Syrius, e até o heavy metal produziu material de fundamento, commo o Korrosia Metala. Enfim, o mais problemático da URSS e cortina de ferro é a dificuldade de acesso.

  4. SBB realmente é muito boa. Hoje em dia não existem mais barreiras para se conhecer as bandas do leste europeu. Tem muito blog russo disponibilizando downloads e entupindo o youtube. O que eu acho, sinceramente, é que os ouvidos ocidentais se preocupam muito em achar semelhanças ou influências das bandas mais conhecidas para, assim, descartarem essas coisas mais, digamos, exóticas. Esquecem que a cultura de lá acrescentou elementos só deles na música que produziam e produzem, independente de ter sido influenciada por Beatles, Elvis, Yes ou ELP. Mas sei lá, este papo rende muito mais numa mesa de bar, regado a cerveja.

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